Sempre foi conhecida pela sua leveza e irreverência. Quando era nova, diziam-lhe que era “afinadinha demais”. A verdade é que “era um caso à parte”, e sabia disso. Nunca sonhou ser cantora e, por isso, acredita que foi a música que a escolheu. Agora, com quase 50 anos de carreira e mais um álbum, olha para trás com amor e satisfação. Lena D’Água mantém a chama e a certeza, e continua uma eterna apaixonada por todos os seus temas.
Estamos na Gulbenkian. Está sol, veem-se pessoas a almoçar na esplanada, a ler nos bancos de jardim, a fazerem piqueniques na relva. Os patos e os pombos deambulam pelo espaço. Ouvem-se os pássaros cantar e a vida parece não ter pressa. Lena D’Água encontra-se sentada num dos assentos de pedra que caracterizam o espaço. Está à nossa espera e recebe-nos com um sorriso. Passou a manhã em entrevistas, mas, mesmo assim, não se cansa de viajar pela sua história, não fosse ela «uma mulher de memórias».
Em novembro, lançou o seu último álbum Tropical Glaciar e a satisfação é nítida no seu olhar. Parece-nos uma mulher leve e feliz. E, numa altura em que o mundo grita por «socorro», conversar com pessoas assim é sinónimo de uma «lufada de ar fresco».
Atrevo-me a dizer que a Lena tem das energias mais leves, descontraídas e ao mesmo tempo irreverentes da indústria musical portuguesa. Vê-se dessa maneira? É uma pessoa leve? Sim, é verdade! Mas é mais quando o disco sai. Antes disso, no tempo de espera, não é bem assim! (risos) Fico inquieta quando me sinto prontíssima e o disco ainda não está… Faltam as misturas, a capa… No disco Desalmadamente foi diferente… Saiu logo. Desta vez saiu um single no final de abril, depois outro em junho, o terceiro em setembro e o álbum em novembro. Foi gradual…
E a Lena é a mesma de há uns anos? Como é que se vê neste momento? Sim. Sinto que – e isto vale para quase todas as pessoas –, o nosso corpo envelhece, mas cá por dentro já não muda grande coisa. Continuamos a fazer asneiras, a falar quando é preciso estar calado… Há coisas que a idade não nos resolve. A impulsividade, a espontaneidade. Se tu és assim, és assim desde os 20 anos. Cá por dentro não muda muita coisa… O que muda é o corpo… O corpo sim, muda muito…Ficamos mais velhotes, se calhar com um problema no joelho direito. (risos)
Já disse em várias entrevistas que sempre teve «falta de juízo». Acredita que só dessa maneira conseguimos viver mais felizes neste mundo cada vez mais louco? Juízo eu tenho, só não tenho filtros. (risos) Como não ando aí a contar mentiras, sinto que posso e até devo ser um livro aberto… Uma pessoa que tem uma vida gigante, cheia de histórias incríveis. Acho que estou a começar a trabalhar nas minhas memórias. Felizmente mantenho uma memória incrível… Acho que tenho um jogo de cintura que me ajuda a aceitar as coisas… «Aceita aquilo que não podes mudar!». Não vamos estar a discutir com pessoas que já têm a «verdade» na mão. Não vale mesmo a pena gastar energia. E, hoje em dia, as pessoas estão cheias de certezas… São mais dogmáticas que a igreja católica. (risos) Faz o teu caminho, diz aquilo que pensas, faz as tuas coisas.
Vai fazer 50 anos de carreira… Acha que a menina que foi chamada ao palco, numa reunião de moradores do Bairro de Santa Cruz, em Benfica, para assobiar a melodia da flauta do tema ‘Pode alguém ser quem não é’ de Sérgio Godinho, está satisfeita? Ou seja, tornou-se na artista que queria ser? Sem dúvida! Apesar de eu nunca ter querido ser artista! (risos) Mas fiz tantas coisas diferentes… Desde coisas para os miúdos, o reportório da Billie Holiday, da Elis Regina com os músicos do Jazz do Hot Clube de Portugal. Não há uma única canção que podia ter ficado na prateleira. Não há! Nos últimos anos, com o Pedro Silva Martins… Eu sabia aquilo que ainda tinha para dar. Continuei sempre a cantar. Fazia aquilo que tinha para fazer. Fosse no casino com três músicos, numa festa qualquer com um pianista. O que me faltava eram canções novas que me representassem como pessoa… E o Pedro cruza o meu caminho em 2016 e parece que eu estava à espera dele.
Já revelou que, em pequena, apesar de ter irmãos, passava várias horas a brincar sozinha. No silêncio. O que recorda da infância? Benfica era tipo uma aldeia dentro de Lisboa. As casinhas com quintais e árvores de fruto… Andávamos todos a brincar na rua. Praticamente não havia carros… Brincávamos muito. Na altura dos Santos Populares os adultos faziam fogueiras e nós saltávamos… Tivemos imensa sorte. Tínhamos imensos amigos. Para viver naquelas casas, as mulheres tinham de ter, no mínimo, dois filhos. Havia famílias com 14! De maneira que a minha infância foi do mais feliz e incrível que se possa imaginar. Nós éramos três. Tive muita sorte em viver esses tempos.
Tinha 17 anos quando se deu o 25 de Abril. Estava no primeiro ano de faculdade. Nessa altura, como é que era ser mulher? Era não poder chegar a casa depois das 23h. Uma vez cheguei um bocadinho depois e levei um ralhete…. (risos) O meu pai não achava graça nenhuma. Eu vinha a assobiar na rua, com o meu amigo Toneca. Não era meu namorado! Nós estávamos precisamente a vir da casa do meu namorado! O meu pai é que não sabia. Vinha toda contente a assobiar e ele estava na esquina à minha espera. Era raríssimo acontecer. Quando começou a haver festas de anos, nessas idades, era difícil conseguir ir. Mesmo lá no bairro… Lembro-me que era tudo muito apertado para as raparigas. Um dia disse-me que eu tinha de falar com a minha mãe e eu disse-lhe: «Oh mãe…Mas porque é que vocês acham que nós durante o dia não fazemos aquilo que vocês têm medo que façamos durante a noite?». (risos)
Passado dois anos, foi mãe… Sim! O namorado que eu tinha antes do 25 de Abril saiu por causa da Guerra Colonial. Foi para a Europa…
E não lhe pediu que esperasse por ele… (risos) Ele disse-me mesmo: «Não esperes por mim!». Eu ainda fiquei um ano a penar. Trocávamos cartas… Eu não sabia se ele ia voltar. Em 75, conheço o Ramiro, que tinha vindo da Bélgica, para onde também tinha ido por causa da Guerra Colonial. Foi a minha grande paixão. Casei-me com ele e tive a minha filha. Quando o Zé Luís (o nome do meu primeiro namorado) voltou, já eu estava com uma barrigona. (risos) Felizmente ele também foi muito feliz… Já não está cá. (pausa) Já morreram tantos…
O seu pai foi um grande jogador de futebol, mas também era um grande amante da música. Trazia-lhe vinis da América, do Brasil… Isso influenciou a sua paixão? Claro que sim! O meu pai influenciou-me muito. Trazia discos incríveis que tenho lá em casa. Ele gostava dos cantores românticos. A minha mãe também cantava, mas era mais na igreja. É por isso que o fado nunca chegou a minha casa. Penso que tínhamos apenas um disco da Amália. Eram os Beatles e, mais próximo de 72 e 73, o José Mário [Branco], o Zeca, o Sérgio Godinho. Os discos que eu comprei num alfarrabista. Ele tinha-os escondidos no meio dos discos antigos em segunda mão, se não era tudo apanhado pela polícia. Ia lá para o armazém dos discos dos comunistas! (risos) Mas sim! Era uma casa muito musical… Os meus irmãos também cantavam. Era uma paixão comum, mas nunca um plano de futuro, um modo de vida…
Começou a estudar Sociologia e desistiu. Depois, estudou para ser professora. Mas já tinha uma viola e já sabia alguns temas… Sim! Eu era muito tímida. O meu pai ofereceu-me a viola. Fomos à Rua do Carmo comprar a minha prenda por ter sido dispensada de um exame… Seguir este caminho foi um bocado sem querer. Quando fui chamada ao palco pelo meu amigo João, em Benfica, para assobiar uma parte da música do Sérgio Godinho, fui apanhada de surpresa.
Foi então a música que a escolheu… Eu acredito que sim. Fui estudar Sociologia porque achava que era o curso que me dava hipótese de estudar mais assuntos… As ciências humanas. Depois aconteceu o 25 de Abril. Não havia aulas, nem professores… Houve quem tenha feito o curso assim! (risos) Eu entrei num grupo de teatro logo em 74, tinha a minha viola. Nessa altura ainda era apenas por amor. Fiz depois a admissão no Instituto Superior de Educação, mas não era para ser professora, era porque tinha psicologia, psicoterapia, linguística, Música Movimento e Drama… Montes de disciplinas que me interessavam. Nesse entretanto, entrei na banda Beatnicks como segunda vocalista. Tinha 19 anos. Éramos todos miúdos. Também comecei a ser convidada para fazer coros de algumas músicas. A minha voz está na música Eu tenho dos Amores, do Marco Paulo. (risos) Comecei a ganhar dinheiro!
Tal como disse, foi uma das primeiras em Portugal a integrar, como vocalista, uma banda de rock – os Beatnicks, grupo musical de Rock Progressivo com base na Amadora. Eram poucas no mundo musical… Acredito que não tenha sido fácil… Acha que os homens, apesar de tudo, continuam a dominar a indústria? Fácil foi… Como nós éramos uma banda e tinha lá o meu marido, o meu amor, eu estava super protegida. Chegávamos a casa e eu tratava da bebé. Não ia para a farra. Eu nunca fiz muitas noites, não gostava. Foi muito raro. Fazia as viagens, os concertos e voltava para casa. Não senti nada disso de ser mulher, ou não ser mulher. Era respeitada. Éramos cinco ou seis músicos e aquilo funcionava como uma família fechada. Claro que depois, ao longo dos anos, tu vais-te dando conta. Quer dizer… Quem é que sobra da minha geração? A Mafalda Veiga continua, mas é mais nova. O que é feito da Adelaide? A Xana retirou-se destas coisas da música. A Dina infelizmente morreu. A Geninha felizmente ainda vai fazendo umas coisas… Os homens da minha geração estão todos aí. Nunca saíram, continuam a passar nas rádios.
E porque é que acha que isso aconteceu? São coisas que demoram muito tempo. Este é um país muito antigo e, apesar do 25 de Abril já ter 50 anos, isto continua a ser muito «de macho». Mas também há coisas que mudaram completamente. Tu estás a fazer-me a entrevista… Eram raras as raparigas que me entrevistavam. Mesmo há 20 anos, eram pouquíssimas as mulheres nas redações, nas rádios, nas televisão. As coisas vão mudando, mas neste meio, as coisas são complicadas. A imagem… Os homens podem envelhecer à vontade, as mulheres já não é bem assim. Já me disseram coisas tremendas.. Pessoas na rua: «Ah, realmente… O que o tempo faz às pessoas!». É triste. Os mais novos tratam-me super bem! As outras pessoas podem envelhecer e eu não? A música Pop Toma, fala um bocado disso. É tudo mentira! (risos) Não são todas lindas, não são todas felizes, não são todas magras, não estão sempre perfeitamente maquilhadas e iluminadas. Há pessoas que sofrem muito com isto e é preciso desviar a atenção dessas coisas.
Já disse numa outra entrevista que nunca souberam muito bem em que gaveta a encaixar. Ainda bem? Ou isso fez falta para nos sentirmos parte da «máquina»? Eu fiz tantas coisas diferentes… Na altura do Rock dos anos 80, nós não fazíamos parte daquilo. O Luís Pedro Fonseca era um músico de excelência que fazia uns arranjos incríveis. Aquilo era feito para encaixar tudo! Grande parte dessas bandas ia para estúdio e era tudo à molhada. (risos) O Luís estava a fazer a canção e já sabia o que a guitarra ia fazer, o que a bateria ia fazer. Era um génio. A mim diziam-me que eu era «afinadinha de mais» e que éramos uma banda de música ligeira. Não sabiam onde nos colocar. Eu era um caso à parte e sabia disso. 90% das canções que eu gravei – fora os inéditos do Variações –, foram todas feitas por ele. Ele nunca foi reconhecido, em vida, como o génio que era.
O álbum Desalmadamente foi considerado um dos melhores discos de 2019. Foi eleita a Melhor Artista Feminina nos Prémios Play 2020 e arrecadou também o prémio da Crítica com o mesmo álbum. Em 2021 recebeu ainda o Prémio José Afonso 2020 e foi nomeada para o Globo de Ouro como Melhor Intérprete. Sente que houve um renascimento? Não, porque eu mantive sempre a chama e a certeza. Só não tinha originais. De vez em quando chegavam-me umas canções para eu ver o que achava, mas eu não me identificava. Foram anos e anos sem encontrar algo que me apetecesse. Queriam que eu cantasse. Eu cheguei a falar com o Reininho! (risos) Acho que ele, na verdade, nunca fez coisas para que outros cantassem. Até que finalmente houve um cruzamento com o Pedro. Foi o Fernando Alvim que me convidou para um Festival Alternativo da Canção – aquelas coisas que ele inventa –, para ir cantar duas canções. O Pedro Silva Martins também tinha sido convidado. Era um dos elementos do júri. Quando acabei as duas músicas, as pessoas quiseram mais. Cantei uma ou duas à capela. Cantei com tanta vontade… Estava tudo louco! Quando eu comecei a cantar A Culpa é da Vontade, à capela, toda a gente se calou… Foi um momento… O Pedro veio ter comigo depois… E disse-me: «Ainda vou escrever para ti!». Esperei mais um ano e tal e depois a Ana Bacalhau, dos Deolinda, resolveu seguir uma carreira a solo. Sorte a minha! (risos)
Este novo disco ‘Glaciar Tropical’ debruça-se muito sobre as temáticas ecológicas e ambientais. O facto de hoje viver numa aldeia, em ambiente rural, longe de uma grande cidade, trouxe-lhe outra visão sobre estas questões? Não, eu já pensava muito nas coisas. No tempo do 25 de Abril, durante a minha gravidez, eu era vegetariana. Depois voltei a comer peixe e tive uma fase em que comida, às vezes, frango assado. Desde que criei ligação com as galinhas lá da aldeia, que não o faço. São queridas, não são parvas nenhumas. Dizer que as galinhas são estúpidas é mentira…
Qual é o tema ambiental que mais a preocupa? Neste álbum ainda não aparece. Quando fizemos o Desalmadamente eu disse-lhe que havia uma questão que me ocupava muito a cabeça e o coração. A questão da ecologia e da natureza. Ele meteu a Carne Vegan que é uma música giríssima. A primeira vez que eu canto uma canção malandra! (risos) E depois há A Semente e A Fruta Feia. Uma outra que não encontrou, mas que irá entrar no próximo que é O Planeta C, porque o B já não vai chegar. Mas o que mais me inquieta é a questão dos animais. No dia em que as crianças tiverem noção que o coelho ou o porco que acham tão queridos, é o que está no prato, as coisas vão mudar. Por enquanto é um tabu. Por exemplo, visitas de estudo… E se fossem no matadouro? (risos) Para perceberem o que é a realidade.
Tem agora uma nova geração de fãs… É bom sentir que se chega a várias pessoas de várias faixas etárias com uma carreira tão longa e bonita? As canções são fantásticas e eu mantenho a minha criança interior! (risos) Sou muito viva e eu acho que é isso que eles topam. Já sabes do meu clube de fãs?! O rapaz tem 16 e a miúda tem 14… São dois adolescentes que criaram a página. É incrível. Eu tenho um espólio gigante e eles vão recuperar coisas fantásticas! Misturam fotografias antigas com músicas de agora… Merece mesmo a pena o trabalho que eles fazem.
Vemos as vozes de outros cantores a mudar. A sua parece sempre doce e cristalina. Tem alguns cuidados especiais? Durmo muito bem. Nunca precisei de ajuda para dormir. Gosto de me deitar cedo. Acordo também muito cedo. Outro cuidado que eu tenho é nunca apanhar sol. Estou sempre a fugir dele. No final dos anos 80, fiz uma recuperação de voz e a minha professora disse-me para não apanhar sol na cabeça. Ficou… Depois, é ter uma certa consciência de não esforçar a voz, não gastar a voz! Com o Benfica é difícil! (risos) Como eu mantive a tal criança e esta chama, isso também ajuda. Apesar da minha voz ter mantido essa tal frescura, também ganhou mais corpo, mais profundidade, mais alma e mais vida.
Quando é que este álbum se começou a materializar? Já contou que o Pedro foi juntando muita coisa sobre si. Leu, por exemplo, algumas publicações do Facebook que o inspiraram na escrita de canções… Sim! A Fruta Feia veio daí. Em vez das frutas ficarem no chão a apodrecer, porque não têm o tamanho certo para serem vendidas nas grandes superfícies, eles fazem esse trabalho. Há lojinhas onde se vende essa fruta. O Pedro convocou-me para ir lá a casa, em 2022. Eram 17 músicas. Fiquei muito comovida. Claro que houve alguns acertos nas letras… Fui aprendendo as melodias, fui experimentando e quando chegou a altura de se marcar o estúdio, o Pedro escolheu as letras. Achei bem. Mas as que ficaram de parte também são incríveis. Ficam guardadas para depois. Houve duas ou três que eu gravei logo à primeira. Já estava com elas há tanto tempo, que já eram minhas.
Sinto-a muito feliz… Muito satisfeita… E estou! Subi mais um degrau! (risos)
Tal como diz, é uma mulher de memórias. Já revelou que está a preparar autobiografia, apesar de não ter pressa. É-lhe importante deixar escrita a sua história em livro? Acho que sim! Quando era miúda, havia uns livrinhos pequeninos sobre a vida quotidiana. Eu adorava. Acho que como eu nasci numa altura em que me lembro dos Beatles, dos hippies, do Maio de 68, o 25 de Abril, começar a cantar sem haver mais mulheres a fazê-lo, ter trabalhado com tantos músicos maravilhosos, tudo o que falámos ao longo desta conversa, que vale a pena deixar essas coisas escritas.
Como é que vê o futuro? Tenho perdido imensa gente, por isso desejo saúde! Desejo o terceiro disco, desta trilogia, se não for quadrilogia. (risos) E a comemoração dos 50 anos de palco com uma mistura de vários temas! Para o livro, não há pressa…