Um destes dias, quando almoçava num restaurante da zona de Alvalade, uma jovem dos seus trinta anos, sentada um pouco adiante de mim, da qual eu só via praticamente as costas, tinha à frente um prato de salada. Mas a sua atenção concentrava-se inteiramente no telemóvel colocado ao lado do prato.
A jovem dava uma garfada na salada e, enquanto mastigava a verdura, pousava o garfo e agarrava no telemóvel. Escrevia uma mensagem com o polegar, e ficava à espera da resposta. Lia. Pousava então o telemóvel, pegava no garfo e dava outra garfada na salada. Voltava a largar o garfo e a agarrar no telemóvel. Escrevia outra mensagem com o polegar, voltava a pousar o telemóvel, a pegar no garfo e a meter na boca mais umas folhas verdes. Estes gestos repetiram-se dezenas de vezes, durante todo o tempo do almoço. Olhar para o telemóvel, teclar com o polegar, meter uma garfada na boca, pousar o garfo, voltar a pegar no telemóvel. Aquela jovem nem sabe bem o que comeu. Nem quem se sentava ao seu lado no restaurante, nem nada do que a rodeava. Aquela jovem viveu todo o tempo no telemóvel.
Um dia, no âmbito de uma ação de formação do grupo Impresa, o jornalista Francisco Penim, então na SIC, dizia que daí a uns anos, poucos, faríamos tudo no telemóvel. Veríamos programas de TV, faríamos pesquisas, enviaríamos mensagens, além de falarmos ao telefone, claro; mas esta deixaria de ser a sua principal função. Isto passar-se-ia por volta de 2004, já lá vão, portanto, mais de 20 anos.
Penim era um jovem jornalista entusiasta das novas tecnologias, eu era um homem maduro e algo cético em relação às maravilhas digitais. E torci o nariz. Devo dizer que a ficção científica nunca me encantou. O meu irmão mais velho devorava os livros de Júlio Verne e H.G. Wells, eu li alguns mas nunca me senti verdadeiramente envolvido.
Em diálogo com Balsemão, presente naquela sessão em que Penim falou, expus-lhe as minhas reservas. Balsemão também se entusiasmava com as novas descobertas, o que era importante na liderança de um grupo de media numa fase de transição rápida para um futuro que ninguém sabia qual seria.
Tendo começado no jornalismo a trabalhar num jornal, o Diário Popular, e tendo fundado depois o Expresso, Balsemão tivera a ousadia de saltar para o audiovisual, fundando a SIC. E perscrutava constantemente o futuro, tentando ver o que aí podia vir.
Apesar de eu ser 10 anos mais novo, a tecnologia não me fascinava. Sempre gostei de escrever – e a escrita está irremediavelmente ligada ao papel. Quando o papel acabar, a escrita tornar-se-á outra coisa.
Comentei que aquela história de se fazer tudo no telemóvel era uma fantasia. Imaginemos que estávamos a ver um jogo de futebol. Tocava o telefone e o que fazíamos? Não atendíamos? Atendíamos e perdíamos um lance de perigo? Havia atividades incompatíveis, e imaginar que num único objeto poderíamos fazer quase tudo era uma miragem. Balsemão sorriu do meu ceticismo, levando-o à conta do meu lado mais conservador.
Hoje, mais de 20 anos passados, verifico que Francisco Penim estava cheio de razão. Hoje faz-se quase tudo no telemóvel. Consultam-se os extratos do banco, pagam-se as contas do supermercado e até se abre a porta de casa à distância!
É certo que eu tinha razão numa coisa: os jogos de futebol continuam a ver-se no estádio ou na TV: são raros os que veem um jogo da sua equipa no telemóvel, até pela razão que invoquei: recebe-se uma chamada a meio e lá se vai uma jogada importante.
Sucede que as próprias pessoas se vão adaptando ao telemóvel. E talvez dentro de uns tempos não vejam os jogos inteiros e só ‘liguem’ ao que lá se passa quando um alerta lhes disser que houve um golo.
Vivemos noutra realidade.
Há muita gente que, sem se aperceber, deixou de olhar à sua volta – e vê o mundo através do ecrã do telemóvel. Para alguns, é a única realidade que existe. Veem-se hoje na rua pessoas que não despregam os olhos do pequeno ecrã que transportam na mão. Se perdessem o telemóvel ficariam perdidas, como uma criança abandonada na multidão.
Chama-se a isto alienação. O homem inventou o telemóvel mas este tomou conta dele, condiciona fortemente o seu comportamento, exige-lhe atenção exclusiva.
Se Penim viu o futuro antes de mim, se Balsemão mostrou sempre um grande fascínio pelas novas tecnologias, eu julgo que estava certo no meu ceticismo. Estamos a entrar num tempo em que a tecnologia nos impõe as suas regras, as suas leis, o seu ritmo. Cada dia nos desumanizamos um pouco mais. Vamos reduzindo os nossos sentidos. Já não há tato, nem olfato, nem paladar, nem nada – tudo se reduz aflitivamente ao mundo assético do digital.
Entre mim e aquela rapariga pendurada no telemóvel durante toda a refeição havia umas dezenas de anos de diferença – mas, de facto, separavam-nos séculos.
O mundo através do telemóvel
As pessoas vão-se adaptando ao telemóvel. Às suas facilidades, às suas exigências, aos seus caprichos. Há muita gente que, sem se aperceber, deixou de olhar à sua volta – e vê o mundo através do ecrã do telemóvel. Para alguns, é a única realidade que existe.