Todo este mundo é intimamente selvagem e ainda por cima estranho, pelo menos era aos olhos de David Lynch. E o talento espantoso de alguns prende-se com o olhar que lançam à sua volta, e que não se limita a ver mas que torna a criar o que vê. Ele não se continha, dominado por esse desabrochar permanente da realidade que se lhe impunha como uma possessão. Além de ter sido um dos cineastas mais influentes do último século, foi escritor, pintor, músico, designer de som, ator, cantor e fotógrafo. A alguns a realidade aparece como um estúdio, em vez de ficarem presos nos seus efeitos mais imediatos, mergulham nas suas relações complexas, não desprezando o elemento onírico, os abalos na consistência da fita. «Odeio coisas engraçadinhas e muito hábeis. Prefiro os erros e os acidentes. E é por isso que me agradam os cortes e as nódoas negras – são como pequenas flores», disse Lynch. Através dos seus filmes, éramos empurrados para um outro nível de perceção. O grau de sugestão era de tal ordem que a própria vida parecia ganhar uma qualidade lynchiana, como sugere a realizadora Carol Morley. «Juro que ele alterava a estrutura dos nossos cérebros».
Nos dias a seguir à sua morte, no passado dia 15, a dias de completar 79 anos, e na sequência de doença pulmonar, multiplicaram-se as homenagens, mas talvez nenhuma tenha sido tão cúmplice como a de Mark Cousins, também ele realizador: «Ser-nos-á possível imaginar o funeral de David? Talvez entre a noite e a madrugada numa floresta escura de sequoias. Vestidos de coelhos, um grupo de homens transporta o caixão lentamente, depois começa a tocar ‘In Dreams’, de Roy Orbison. No clímax, mil carpideiras, sincronizadas como num filme de Busby Berkeley, cada uma puxa de um cigarro e fuma-o. O fumo faz com que a cena pareça uma pintura de Caspar David Friedrich. Os tipos que levam o caixão avançam, e então começa a música ‘I’m Deranged’ de outro David – Bowie. Lynch usou-a em ‘Lost Road’. A música é cinética. Os coelhos começam aos saltos».
A pior coisa a fazer neste momento seria abatermo-nos no regime de uma nota de pesar convencional, quando tudo o que Lynch fez foi incentivar uma desordem magnífica, um regime onírico e anárquico capaz de rivalizar e denunciar todas essas noções que imprimem em nós a ideia de um paraíso que possa ser encontrado numa dimensão estática.