Pátria lambida

Ainda hoje cismo se o taberneiro que vendia gatos não teria sido mais sábio governante do que a maioria que o abrilismo trouxe…

Quando ainda havia tabernas autênticas conheci uma no Alentejo profundo ao lado de uma estrada onde viajava gente que por lá parava, ao invés de hoje em que as vias rápidas engolem apressadas a planície antes de se avistar a praia. O velho taberneiro, um rabugento republicano patriota de cepa velha, atrás do balcão corrido contou-me um episódio curioso. O caso é que a um canto do chão da taberna havia um prato de loiça – eu ainda o vi – a servir de gamela a três gatos meio foragidos que por ali cirandavam. Certa vez um caçador citadino que ali estacionou, cativou-se manhosamente por um dos gatinhos, branco, ágil e faminto que alambazado lambia os fundos do prato. «Lindo bichano, vem cá, pss, pss…», chamou o simpático que logo quis levá-lo pagando, claro. Dois, três, cinco mil escudos pelo gato, subiu licitando; vendido! bateu o taberneiro no balcão fazendo da mão martelo leiloeiro. O viageiro pagou e pegou no gato, levou-o até ao jipe e depois voltou insinuante: «Amigo, já agora deixe-me levar o pratinho que o gato está afeito a comer nele». Resposta rude: «Deixe estar aí o prato que com esse prato já eu vendi muitos gatos!». O antigo prato em faiança Fervença algo macerado, século XIX, mostrava em vivo colorido o busto garboso de Camões envolto em frase floreada: «Esta é a ditosa pátria minha amada». Um antiquário a fingir de caçador? O taberneiro desfez a dúvida.
Na manha de se querer levar lebre por gato Camões desempata e serve o episódio para repensarmos a troca trágica quando Portugal, há 50 anos, para fazer a democracia caiu no falso dilema de desistir da ideia de pátria. Não tinha que ser assim, e a quem o fez há que pedir contas, não por vingança doentia, mas para salutar recobro. O 25/Abril – um golpe de estado militar – foi a solução para um problema corporativo e também, diga-se, para a insustentável hesitação do marcelismo perante a guerra ultramarina. Mas uma pergunta se impõe: que razões poderosas, quiçá imponderadas, levaram os militares envolvidos, em boa parte senão a maioria, formados e imbuídos de forte fundo nacional, a terem num ápice revolucionário abdicado da consciência de pátria? Para quem tenha memória do golpe recordará que, de repente, a palavra nação saiu do vocabulário dos militares, a pátria foi expulsa para as calendas do olvido. Apenas sobrou o país para aqui, democracia para acolá! Ora, democracia não tem que excluir pátria como aliás se atesta em muitas nações democráticas. O que aconteceu e é silenciado, é que sendo verdade que o Estado Novo foi desistindo de resolver a questão ultramarina também as ditas oposições democráticas ao longo de 50 anos não fizeram melhor. E como no 25/Abril foi a voraz Oposição de Esquerda que ficou com o menino nos braços, a ela há que pedir contas. Não tinha nada que lançar fora o bebé recém-nascido com a água do banho abrilista.
Não cabe aqui a argumentação desta tese que livro recente de Jorge Morais – A Oposição ao Estado Novo na encruzilhada colonial – tão verazmente documenta. Convém lembrar que Salazar, e também Caetano, sempre visaram uma África portuguesa multirracial berço de novos Brasis, propósito muito similar à oposição republicana tal como se atesta em várias ideias confederativas. Insignes oposicionistas mostram-no: Brito Camacho, Jaime Cortesão, Henrique Galvão, Ramada Curto e, principalmente, Norton de Matos. Quem falhou foi a oposição socialista via Mário Soares que nos anos prévios ao golpe, não tendo feito o seu dever de alternativa séria, foi absorvida pela estratégia de Cunhal a soldo da União Soviética. A descolonização dolorosa surgiu, pois, em corolário de quem nunca quis pensar Portugal inteiro e o deixou dilacerado entre despojos da Guerra Fria.
Ainda hoje cismo se o taberneiro que vendia gatos não teria sido mais sábio governante do que a maioria que o abrilismo trouxe. Afinal, em vez da gamela do poder, serviria melhor a pátria um prato Fervença com a esfinge de Camões. Mesmo lambido. l