Ricardo Pereira. “Treinar guarda-redes é a forma de eu continuar a jogar”

A baliza foi sempre a grande paixão de Ricardo Pereira enquanto jogador e agora como treinador de guarda-redes. É um globetrotter do futebol, um desporto coletivo até ao momento em que o guarda-redes erra.

Desde muito novo que Ricardo Pereira tem paixão pelo futebol. Na sua infância jogava com os amigos, mas ia sempre à baliza, feita por duas pedras ou mochilas da escola, e não era por ser gordo, desajeitado ou caixa de óculos, era mesmo porque gostava. «A minha infância foi passada a jogar futebol», sublinhou. Aos 12 anos, começou a jogar no Juventude Operária do Monte Abraão, e foi por aí fora até aos 38 anos. Ainda jogava à baliza quando assumiu o cargo de treinador de guarda-redes dos Sub 17 do Benfica. Antes de enveredar pela carreira de treinador, Ricardo Pereira trabalhou como educador de infância, foi responsável pelo projeto de entretenimento para crianças KidZania, e formou-se em psicologia clínica, outra das suas paixões. Mas o “bichinho” do futebol nunca o largou e tirou o curso de treinador de guarda-redes. Começou a trabalhar nos escalões inferiores em 2011, passados cinco anos estava na Arábia Saudita a treinar o Al Fateh. Seguiu-se o Standard Liège (Bélgica), o Legia Varsóvia (Polónia), o Nottingham Forest (Inglaterra), o Independiente del Valle (Equador), o Real Valladolid (Espanha) e no decorrer desta época aceitou o convite para ser treinador de guarda-redes do Al Ain (Emirados Árabes Unidos). Um verdadeiro globetrotter do futebol.

Como aconteceu a passagem para o futebol?

O desejo de fazer carreira no futebol nunca se perdeu. As coisas aconteceram muito depressa e tive pessoas que me ajudaram porque acreditaram em mim, nomeadamente o mister Sá Pinto.

O treinador de guarda-redes está longe dos holofotes. Porquê essa paixão pela baliza?

Quando era miúdo tinha jeito para jogar no ataque, mas a baliza sempre foi a minha paixão enquanto jogador. Já tive a experiência de treinador principal na Arábia Saudita para ajudar a salvar um clube da descida de divisão, mas não me vejo a ser técnico principal e muito menos adjunto. Treinar guarda-redes é a forma de eu continuar a jogar através dos meus guarda-redes.

O treinador de guarda-redes tem o mesmo curso do treinador principal e a especialização no treino de baliza. Pode dizer-se que é mais completo?

Não tenho essa presunção até porque tenho trabalhado com grandes treinadores, mas é verdade que possuo um conhecimento que eles não têm. O treinador principal sabe mais do jogo, mas penso que seria importante ter também noções do treino de baliza para tirar o melhor do seu guarda-redes. Dou um exemplo de sucesso, aquilo que Pep Guardiola pede ao Ederson faz dele um jogador de campo, que abandona a baliza e dá linhas de passe, isso faz com que haja verdadeiramente 11 jogadores de campo. Acho importante conhecer o jogo, pois, se souber apenas de baliza, nem de baliza sei, é preciso saber muito mais.

Longe vão os tempos que o guarda-redes ficava na baliza a tentar defender os remates violentos dos seus colegas. O treino de guarda-redes evoluiu muito nos últimos anos?

Há relatos que falam disso. O treino não tinha muita ciência e reproduzia aquilo que eram as necessidades da altura. O guarda-redes estava na linha de golo só para defender as bolas que iam à baliza, faltava-lhe o treino de jogo de pés e a responsabilidade de organizar o jogo. O futebol está mais exigente e, atualmente, as funções do guarda-redes são muito mais alargadas. É um jogador de campo com tarefas defensivas, pois é o único que pode usar as mãos.

Qual é o perfil ideal de quem está na baliza?

Um guarda-redes moderno deve ser bom em três dimensões. Deve ter atitude a atacar e jogar com os pés; defender a baliza e o espaço, nomeadamente as saídas a cruzamentos, e ter bom controlo de profundidade.

Concretamente, no que consiste o seu trabalho diário?

O trabalho começa muito antes da chegada ao campo. Em primeiro lugar tenho de perceber muito bem aquilo que ele é capaz de fazer e o estado em que chega ao clube para depois ver até onde pode chegar no futuro. A semana normal de trabalho tem sempre em consideração o próximo adversário. Fazemos um trabalho de análise com os dados que recebemos para avaliar todas as possibilidades que o adversário tem para nos pressionar.

Os guarda-redes começam por fazer um treino específico de 45 minutos, e só se juntam aos colegas para o treino conjunto, onde trabalham a estratégia para o próximo jogo. Depois, analiso a sessão em vídeo e seleciono algumas imagens que envio para os atletas com um feedback do que acabaram de fazer e os aspetos onde é possível melhorar.

Tem alguma experiência que tenha sido marcante?

A passagem pelo Valladolid foi muito enriquecedora naquilo que é a dimensão total do treino de guarda-redes. Juntamente com o departamento de fisiologia elaborámos um plano de ginásio diário para trabalhar em especificidade.

Qual o tipo de treino preferido?

O objetivo principal é treinar de forma a evitar sofrer golos. Há duas metodologias de trabalho, uma meramente técnica e analítica, onde se mecaniza uma técnica, e outra mais aberta, que recria de forma situacional e estimula muitas tomadas de decisão daquilo que é o jogo do guarda-redes. Este método de trabalho consiste, basicamente, em estar sempre a decidir e a tomar decisões em milésimos de segundo, eu enquadro-me muito mais nesta segunda linha de trabalho.

Tendo em conta a sua experiência e conhecimento, o que é um guarda-redes perfeito?

Há características que são fundamentais: inteligência, coragem e velocidade. É necessário ser tremendamente inteligente porque o jogo de um guarda-redes de topo envolve muita antecipação cognitiva, muito jogo de probabilidades. A bola ainda não chegou a determinado lugar e ele já está a perceber, através dos sinais dos adversários, que a bola vai para aquele local e tem de decidir o que vai fazer em milésimos de segundo. Além disso, quando uma bola é metida em profundidade nas costas da defesa deve ter uma leitura de jogo e um timing perfeitos para conseguir chegar a tempo à bola, e, muitas vezes, a velocidade da bola depende de outros fatores como o estado do relvado. Um guarda-redes é muitas vezes chamado a intervir nas costas da linha defensiva e um erro de milésimos de segundo numa saída fora da área pode custar uma falta e um cartão vermelho. Outro aspeto fundamental é a coragem de assumir responsabilidades e de correr riscos físicos, diz-se muitas vezes que o guarda-redes põe a cabeça onde o avançado normalmente mete o pé. Há, no entanto, mecanismos de defesa que nos fazem não correr determinados riscos pelo medo do contacto físico ou de errar. Se um guarda-redes estiver permanentemente a proteger-se nunca chegará ao topo. Outra característica muito importante é a velocidade. A velocidade de reação, a velocidade de deslocamento em espaços curtos e a velocidade de leitura e interpretação.

Reunir essas três características consegue-se só com trabalho ou são necessárias qualidades inatas?

É óbvio que o trabalho ajuda muito, mas há características que observamos desde muito cedo. Há guarda-redes que têm uma aptidão notável para “cheirar” o jogo.

Nos grandes momentos como, por exemplo, finais, os guarda-redes sentem maior pressão do que os jogadores de campo?

Não digo que sintam maior pressão, mas há uma interiorização maior da responsabilidade e da culpa, já que os erros têm consequências mais dramáticas para o resultado final. Mas ele é tão culpado quanto os outros. É do senso comum que para haver uma falha do guarda-redes é porque nenhum dos outros 10 jogadores conseguiu intercetar a bola que chegou à baliza.

Os guarda-redes têm algum acompanhamento psicológico antes dos grandes jogos?

A psicologia desportiva é uma área muito utilizada no futebol profissional. É bastante importante para ajudar o atleta a lidar com a pressão, a controlar melhor a respiração e a melhorar a concentração, entre outros aspetos. O trabalho dos psicólogos junto dos guarda-redes é fundamental, pois ajuda-os a controlar a ansiedade e manter a concentração durante os três minutos em que vão estar em ação.

Porquê três minutos?

Se contabilizarmos todos os lances em que o guarda-redes intervém de forma direta sobre a bola verificamos que pode variar entre os três e os cinco minutos. Há ainda as intervenções não diretas, caso da comunicação com os colegas e a decisão de sair ou não da baliza.

Existe alguma injustiça dos adeptos para com os guarda-redes?

Há uma dimensão cultural muito própria na forma de ver o jogo. Quando tudo corre mal é normal responsabilizar três pessoas: o árbitro, o guarda-redes e o treinador, é para eles que as pessoas dirigem as suas frustrações. É natural que o guarda-redes sinta mais essa pressão e responsabilidade, até porque tem os adeptos, a comunicação social e, em alguns casos, os próprios colegas a culpabilizá-lo. Agora, têm outro elemento para culpabilizar que é o treinador de guarda-redes (risos).

A baliza tem segredos?

Tem. Há segredos que só os guarda-redes conhecem. Aqueles metros à frente da linha de golo e as distâncias para os postes têm segredos que são difíceis de explicar a quem não viveu naquele espaço. É difícil explicar o que é defender uma bola rematada a quase 100 km/h e a quantidade de vezes que mudou de direção e a velocidade que ganha depois de tocar na relva. É também difícil explicar porque é que ao meter a mão a bola vai para dentro da baliza. Mas também há momentos em que o guarda-redes faz asneira e a bola é cúmplice e não entra.

Treinou inúmeros guarda-redes, alguém o marcou em especial?

Foram todos tremendamente importantes para mim. O André Ferreira foi um guarda-redes que me marcou muito pelo seu trajeto. Depois, poder treinar um “monstro” como o Guillermo Ochoa foi muito importante. Tenho momentos marcantes com cada um, todos foram muito importantes para mim, depois de passar por eles sinto que sou melhor treinador.

Qual é o guarda-redes número um?

Quando era jovem, tive uma referência chamada Józef Mlynarczyk, era um guarda-redes extraordinário. Gostava igualmente do Vítor Damas e do Manuel Bento. Mais recentemente, destaco o Manuel Neuer, um guarda-redes fantástico, o Ederson, um dos guarda-redes mais completos dos últimos anos e que serve na perfeição a maneira de jogar da sua equipa. Emiliano Martínez é outro guarda-redes que me impressiona por aquilo que representa em campo. Está longe de ser perfeito a nível técnico, tático e físico, mas a sua “arrogância” tipicamente ganhadora tem sido responsável pelos sucessos da Argentina. Ele enche a baliza, seja nos penáltis, seja noutros momentos do jogo. Tem uma dimensão fora do comum.

Tem uma vasta experiência de vida em países completamente diferentes. Como tem sido a adaptação?

Deixei Portugal há oito anos e este sonho tem tirado muito tempo à família. Sem uma estrutura familiar como a que tenho a palavra culpa estaria presente em mim todos os dias, mas a minha mulher e as minhas filhas não permitem que isso aconteça. Se tivesse ficado em Portugal não seria o mesmo treinador que sou hoje. Faltava-me mundo. Hoje, posso dizer que sou uma pessoa diferente. Em relação à adaptação, costumo dizer que só custa a primeira vez. Na Arábia Saudita foi tudo estranho, alimentação, as questões culturais e a forma como veem o futebol. Mas como vou de coração aberto, tem sido fácil. Além disso, há momentos especiais como privar com o Ronaldo, dono do Valladolid, que é uma pessoa extremamente simples, comer uma francesinha com o Ochoa em minha casa ou beber um mate no centro do relvado no Maracanã, depois de ter ganho a Recopa sul-americana com o Independiente del Valle.

O que falta ainda fazer na sua carreira?

Depois de me ter despedido da KidZania para seguir o meu sonho e ir de mochila às costas para a Escócia tirar o curso de treinador, o futebol deu-me uma segunda oportunidade. Sempre que há uma mudança nos grandes do futebol português as minhas filhas dizem que está na hora de regressar. Tenho feito coisas bonitas com guarda-redes em outros países e gostaria de fazer algo em Portugal. Ficaria muito feliz se pudesse voltar a treinar no nosso país.