As palavras moldam realidades. Algumas deslizam sem deixar rasto; outras golpeiam com a precisão de um bisturi. Mediocracia pertence a esta última categoria. Não designa apenas uma inclinação para o meio-termo, mas um regime que o impõe como norma absoluta. A mediocracia não tolera a genialidade nem a incompetência flagrante: prospera na seleção daqueles que se limitam a seguir a corrente, garantindo a sua permanência sem jamais ultrapassar o aceitável.
O termo mediocracia nasce da fusão entre mediocria –“médio”, “ordinário” – e o sufixo -cracia, que denota “poder” ou “regime”. Mas não se confunda com mediocridade: não se trata de uma falha pontual ou de um desvio casual – afinal, comum – mas de um sistema estruturado, no qual a mediania não é um acaso, mas uma imposição.
A palavra não é nova, nem o fenómeno que designa. Alain Deneault, no ensaio La Médiocratie (Lux, 2014), analisou de forma contundente o mecanismo pelo qual a ascensão dos “competentes medianos” às posições de poder não seria um fenómeno acidental, mas parte de um projeto deliberado que esvazia as instituições de qualquer potencial disruptivo. Segundo o filósofo canadiano, essa lógica não se restringe a uma tendência cultural ou económica, mas configura um processo político estruturante, que padroniza o pensamento e impõe limites invisíveis ao que pode ser dito e feito.
Essa corrosão não é obra do improviso, mas resultado de uma engenharia social meticulosa: a escola ensina a reproduzir, não a criar; a empresa exige trabalhadores simultaneamente autónomos e absolutamente descartáveis. A mediocracia forma indivíduos competentes, mas sem brilho; flexíveis, mas sem rebeldia. Espera-se que correspondam às expectativas, mas nunca que as questionem.
O perigo maior não reside apenas na padronização, mas na reconfiguração da própria realidade. O que não se enquadra é expurgado, desacreditado ou simplesmente invisibilizado. Não se restringe apenas a acção; limita-se o pensamento. A captura da linguagem é uma das armas mais insidiosas: conceitos como governança, competitividade, parceria, resiliência constroem um campo semântico que condiciona o debate, restringindo as alternativas sem, no entanto, parecer suprimi-las.
Os grandes escritores captam realidades antes de se tornarem evidentes. Em 1871, Edmond de Goncourt usava médiocratie para descrever o poder ascendente das classes médias, capaz de corroer o sufrágio universal e silenciar a liberdade de imprensa[1]. Na mesma época, Gustave Flaubert empregava mediocracia para denunciar a estagnação cultural e o triunfo do banal durante o Segundo Império. No incisivo prefácio às Últimas Canções de Louis Bouilhet (1870-1871), fustigava essa degradação com uma veemência implacável: “Ó mediocracia fétida, poesia utilitária, literatura de burocratas, discursos estéticos vazios, vómitos económicos (…) Vós não sois são a gangrena, sois a atrofia!”[2]
Estas palavras ecoam com uma atualidade acutilante. No tabuleiro político-mediático, as peças não se movem por força de rupturas ou confrontos diretos, mas por uma reorganização silenciosa do jogo, que altera progressivamente as regras e desloca os eixos de decisão sem que a transformação seja percebida como tal. A mediocracia não impõe um xeque-mate brusco; dissolve as instituições sob uma lógica empresarial mascarada de eficiência, até estas se tornarem irreconhecíveis.
A mediocracia não colapsa de forma abrupta; exaure progressivamente as alternativas. Tal como no xadrez, onde a inércia conduz ao impasse, este sistema não precisa de violência para triunfar. Basta-lhe que todos os movimentos se desloquem para o centro.
Que alternativa resta? Como escapar a este jugo sem cair nos excessos que alimentam a própria mediocracia? A resposta reside num gesto tão fundamental quanto desaprendido: fortalecer a vontade e a determinação pelo pensamento crítico e pela criatividade. Recusar a mediania sob o pretexto da eficiência não é apenas um imperativo político e cultural, mas também uma exigência formativa.
A universidade tem um papel central nesta luta. Não pode limitar-se a formar técnicos competentes para um mercado que os descarta sem hesitação; deve ser um espaço onde o pensamento crítico e criativo não apenas se exerce, mas se afirma como uma força de mudança. Mais do que um lugar de transmissão de saberes, a universidade deve ser uma utopia real, onde o sujeito emerge no próprio acto do conhecimento, capaz de nomear, questionar e desarticular os automatismos do pensamento instituído. Face à mediocracia, que reduz a realidade ao previsível e ao gestionável, a universidade deve assumir-se como bastião da irredutibilidade do pensamento crítico e da invenção.
Disse-nos Mallarmé, no final do século XIX: “um lance de dados jamais abolirá o acaso”. E justamente nesse horizonte de incerteza e possibilidade – onde o pensamento se expande, se reinventa e desafia a ordem imposta – que reside a sua verdadeira missão e a sua mais urgente forma de resistência.
[1] Edmond de Goncourt, Journal des Goncourt, 1892 t. 4, p. 262.
[2] Minha tradução. Texto original disponível na BNF/GALLICA: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k548365/f6.item.r=.langFR
Universidade de Aveiro