Carlos Paredes e a ressurreição de um instrumento cadaverizado 

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Num país onde durante décadas até era proibido apontar, Carlos Paredes teve de vencer uma série de interditos, barreiras que se impunham mesmo no próprio sangue, vindo ele de uma família com grande tradição na canção coimbrã, e em que a guitarra portuguesa era quase um brasão, tudo para decompor a tradição e dar-lhe uma oportunidade de buscar um horizonte bem mais vasto.

Depois do último acorde, a guitarra exala ao exterior um vazio idêntico ao que encerra. Fica o instrumento como um soluço, a evadir-se pela sua boca redonda. García Lorca viu o tempo mais largo passar sobre essa ruína, e notou que, como a tarântula tece uma grande estrela para caçar suspiros, assim algo persiste flutuando no seu negro poço de madeira. Foi pelas seis da manhã do dia 23 de julho de 2004 que o último fôlego de Carlos Paredes se perdeu. Em dezembro de 2003, fora internado num lar em Campo de Ourique, desaparecendo inteiramente da vida pública. Fora-lhe diagnosticada mielopatia, uma variante de esclerose múltipla que compromete a medula espinhal, levando à perda gradual dos movimentos. A sua última atuação em público tinha sido dois meses antes, na Aula Magna, mas a progressão da doença foi impiedosa, e ele não voltou a assentar a mão com aquela abertura aracnídea sobre as doze cordas tensas, nem se ouviu mais o moroso suspirar dourado na hesitação entre duas notas, causando um desequilíbrio entre as estrelas. Era a Morte, de gadanha aos ombros, passos rasgados, turva e esquelética, como num poema de Antonio Machado. Teria de esperar mais de 10 anos para se ver livre dela, trocando a Morte pela morte, como um castigo pela audácia com que desde os quatro anos ele arrebatou a guitarra e a levou para os sonhos, ressoante e trémula, dominando-a com a brusca mão que, ao dedilhar, fingia o pousar de um ataúde em terra. Depois do seu pai, Artur Paredes, tê-la libertado do fado, autonomizando o instrumento, coube-lhe a ele mostrar que a verdadeira força deste estava nesse seu pranto solitário, como um sopro que lança a cinza ao vento e o pó dispersa.

A música era demasiado importante para viver às custas dela

Carlos Paredes merece melhor do que esse solene enterro na vala comum dos desígnios nacionais, das pífias meditações sobre a “portugalidade”, com toda a baba dessas evocações retardadas, merece ainda o espanto da sua dedicação ao estudo profundo daquele instrumento, como se o radiografasse, ele que, por uns anos, foi técnico arquivista de Raio X no Hospital de São José. O que ele quis foi esquivar-se dessa sonâmbula e trágica grandeza de um país que tudo liquida em nome desse alimento mortífero, dessa existência nacional meio trôpega, bastante triste e molesta, que não sabe resistir a essa compulsão langorosa, fiando a teia de força para se arrancar ao passado e retomar a lucidez e o sobressalto que exige o presente. Se ele foi tão virtuoso, o que conta mesmo é a forma como a guitarra portuguesa foi o instrumento de uma libertação daquele homem, que se caracterizou sempre por uma existência apagada, que viveu a maior parte da sua vida subjugada às servidões que lhe impunha aquele país sufocante, marcado pela opressão, pelo isolamento, por uma mentalidade tacanha, vivendo no exercício da intriga, da vigilância e denúncia. O pai ensinara-lhe a agarrar a guitarra, meia dúzia de posições, mas depois ele não precisou de grande incentivo. Como se não tivesse mais nada, arrastou-a para o mais fundo de si, pôs-se a estudar com afinco aquele instrumento, revelando uma facilidade assombrosa, ao ponto de este se tornar uma extensão física sua. Mas a verdade é que através deste, metamorfoseava-se, revelando um outro lado de si. E por insistência da mãe, a sua formação musical não se ficou por aí, mas foi complementada pela componente clássica, tendo aprendido a tocar piano e violino. Também foi ela quem incutiu nele a inquietação, o elemento de consciência política que o levaria mais tarde a filiar-se no Partido Comunista Português. Em consequência, viria a ser preso pela PIDE em 1958, passando 18 meses encarcerado no Forte de Caxias, onde foi submetido a tortura. Mesmo aí, sabia de cor aquele instrumento que lhe ofereceu uma zona de recreio e de imunidade, e os colegas de prisão lembram-se de o ver percorrer o pátio, a dedilhar uma guitarra imaginária, seguindo com a composição de música na sua cabeça. Depois da prisão, no entanto, a vida ficou mais difícil. Expulso da Função Pública, viu-se obrigado a trabalhar como delegado de propaganda médica. Teria de esperar pela revolução para se ver de novo reintegrado nos quadros do São José, e sempre que lhe perguntavam porque não procurava a profissionalização enquanto músico, ele reforçava que a música era demasiado importante para viver às custas dela.

Um instrumento singular

A exemplaridade da arte de Carlos Paredes não está só no conflito que viveu, não apenas com a sua época, e as barreiras que esta lhe colocou, mas na transmissão e fuga às tradições musicais fixadas, mas sobretudo na complexa relação com o seu pai, que além de ter sido uma figura com tão grande relevo em firmar a canção coimbrã, teve um papel decisivo no que toca a elevar a guitarra portuguesa à condição de instrumento solista, e que acabaria por sentir que o filho, ao gravar canções do repertório que ele mesmo reavivara, apropriando e impondo o seu desvio, estava a insultá-lo. Paredes começara a compor para si muito novo, mas o arranque da sua carreira foi particularmente tardio, pois sabia reconhecer o choque que ele introduziria, sendo a guitarra portuguesa um instrumento tão singular, de tal modo que o intérprete não podia deixar de transmitir a sua personalidade às composições que gravava. Depois, no seu caso nem se pode separar a vocação enquanto instrumentista dos elementos de inovação e intrepidez enquanto compositor, uma vez que os dois estavam tão intimamente ligados, e ele tinha um processo tão exigente como lento, esforçando os limites, atento aos impulsos e às possibilidades que lhe surgiam por essa brecha exploratória, gravando pequenos trechos, frases que se lhe impunham, e era assim que ia construindo as suas composições. Mas houve nele sempre um extremo pudor, uma reserva entre o respeito às raízes e esse ímpeto nele que teve de esperar até à sua reforma para que, enfim, ele lhe desse expressão, e se permitisse desenvolver a sua carreira enquanto músico. O pai viria a morrer em 1980, e ele permitiu-se então multiplicar as suas atuações públicas por todo o país, sendo que só aos 59 anos realizou o seu primeiro espetáculo como cabeça de cartaz. Durou pouco mais de uma década esse período em que parecia ter sido tomado de uma certa urgência, isto até lhe ser imposto aquele silêncio que apenas era atenuado pela edição de material de estúdio previamente gravado, até à edição integral dos seus registos sonoros, sendo para todos nós um consolo saber que ele foi recebendo os ecos dessa atenção crescente que a sua obra estava a receber.

Um dos aspetos em que ele se distinguiu, foi na projeção internacional que a sua obra teve, algo a que não terá sido alheio o seu gosto em colaborar com outros músicos e autores, tendo sido procurado algumas vezes por artistas estrangeiros. Começou pelas encomendas que recebeu para fazer a banda sonora de filmes tão marcantes como Verdes Anos (1962), de Paulo Rocha, ou mais tarde Mudar de Vida (1966), do mesmo realizador, além de ter abraçado com enorme entusiasmo desafios que lhe foram feitos por outros cineastas, como Manoel de Oliveira ou Fonseca e Costa. E entre tudo o que dele se disse, todas as homenagens e condecorações, talvez o elogio mais justo que lhe foi feito tenha vindo de Paulo Rocha. Este vincou como Paredes assumiu o encargo como uma honra, e se entregou a um exercício de dolorosa experimentação. «Era um louco e um perfeccionista. Ficámos completamente presos em estúdio porque ele inventava muito e quase ficava com os dedos em sangue de tocar tanto».

Mais colaborações

São igualmente marcantes as colaborações com outros artistas, por exemplo, em 1970, quando lançou Meu País – Canções com a cantora Cecília de Melo, ou É preciso um País, em 1975, com o poeta Manuel Alegre, ou ainda Invenções Livres, com o pianista António Victorino d’Almeida, em 1986. Merece ainda um particular destaque o disco Dialogues, que gravou em 1990 com o contrabaixista Charlie Haden, tendo este registo sido apresentado ao vivo nos coliseus de Lisboa e do Porto. «O Charlie Haden abriu-lhe muitas portas no mundo do jazz, ficaram todos fascinados com ele», disse em entrevista à CNN Luísa Amaro, sua companheira na vida e nos palcos nos últimos anos, reconhecendo o peso que estas colaborações com artistas estrangeiros tiveram, sendo que a iniciativa partia sempre deles, como continuou a ocorrer depois da morte de Paredes, com os principais esforços de divulgação da sua música lá fora a serem promovidos por admiradores que sentem a necessidade de transmitir este legado.

 A sua companheira revelou também que Paredes chegou a ter planos para tocar com Astor Piazzolla, que morreu em 1992. E logo a seguir ficou doente e já não pôde responder a outros convites, nomeadamente, uma oportunidade de tocar com Ravi Shankar e com o Kronos Quartet. «Foi uma enorme injustiça, porque naquela altura ele iria finalmente recolher os frutos de todo o trabalho», salientou Luísa Amaro. Contudo, o que ficou pelo caminho não merece ficar banhado de uma luz espetral em relação a tudo aquilo que poderia ainda ter sido concretizado. Não são poucos os registos que Carlos Paredes nos deixou, e se a sua influência se pressente em Dead Combo, Tó Trips, Norberto Lobo ou Filho da Mãe, é evidente que o ímpeto que ele nos transmitiu continua a abrir possibilidades, a instigar-nos a uma fulgurante exploração das tradições que possa ser conduzida à margem do programa comercial, procurando aquela grandeza que subterraneamente permite transformar a própria paisagem sonora. Nesse aspeto, é inegável como Paredes gizou um plano de evasão magnífico, servindo-se de um instrumento que até certa altura se vira prisioneiro do fado, mas no qual ele soube ouvir não só algo de antigo, de primevo, mas ao mesmo tempo «um fogo do presente que anseia libertar-se». Assim, ele pôde criar um novo estilo interpretativo, libertando a guitarra portuguesa do “pieguismo langoroso” a que esta estava associada, apontando a um horizonte mais vasto com aquelas «frases longas construídas como grandes curvas de tensão dramática e estrutural» (Rui Vieira Nery). Assim, o que ele nos transmitiu foi ao mesmo tempo um requiem e uma sinfonia, como se ele tivesse decomposto o cadáver de séculos prometendo-o ao desdobramento de múltiplas ressurreições.