J. D. Vance foi a Munique num momento em que aguardava – antes da verborreia de Trump em relação à Ucrânia – pelo resultado das negociações entre os EUA, a Rússia e a Ucrânia. Pela conjuntura, esperava-se que o discurso fosse aproximado ao que o Secretário da Defesa, Pete Hegseth, deu dias antes. E, em certa medida, até foi, no sentido em que a Europa deve gastar mais em defesa, garantindo que os EUA continuam empenhados na NATO, mas insistindo, com legitimidade, no burden sharing.
Mas Vance surpreendeu e tem causado alguma celeuma. A origem da surpresa não reside na sua capacidade retórica, amplamente reconhecida, mas sim na substância. O VP americano veio ao velho continente falar mais de valores do que de economia ou defesa, e desengane-se quem pensa que se alcança o sucesso nos dois últimos setores na ausência do primeiro. Com isto pretendo dizer o seguinte: a União Europeia tem triturado a soberania dos seus Estados-membros, respondendo a toda e qualquer crise com a palavra “aprofundamento”, recorrendo a este último conceito como se fosse uma varinha mágica. Está provado que não é. Este “aprofundamento” tem sido utilizado como fachada para mascarar o aumento do poder de Bruxelas, que esvazia os Estados num exercício desenfreado de centralização de poder em indivíduos, vulgo burocratas, toldado por uma agenda ideológica que desvirtua os próprios princípios fundadores da União Europeia.
De forma curta, o “aprofundamento” brindou-nos com uma multiplicação de diretivas e regulações que mais não são que um tiro no próprio pé, com uma imigração descontrolada que tem provocado ruturas profundas no tecido sociocultural e, por fim, com a crescente irrelevância europeia no cenário internacional, sendo a ausência da UE no processo de paz da Ucrânia o sinal mais evidente. No que diz respeito ao primeiro ponto, a crítica não vem apenas da outra margem do Atlântico; Mario Draghi, no seu mais recente artigo publicado no Financial Times, “Forget the US – Europe has successfully put tariffs on itself” (Esqueçam os EUA – a Europa conseguiu impor tarifas a si própria, em português), foi perentório quanto a isto, tal como já o tinha sido no seu relatório em setembro do ano passado que parece ter ficado esquecido numa gaveta empoeirada de Bruxelas.
Dito isto, o discurso de Vance deveria forçar uma dura autorreflexão na cúpula da UE que acredita ser guardiã da democracia, mas que se esquece, de forma bastante frequente, que a democracia tem no Estado-nação, e na sua inerente soberania, um dos seus mais indispensáveis balões de oxigénio. A democracia não é um sistema rígido, que seja replicável da mesma forma em todo o lado. A sua saúde depende mais de fatores específicos de determinadas geografias, que resolvem os seus problemas e respondem às suas ameaças com as suas particularidades naturais, do que de «mais leis, mais regras, mais governo, mais poder para o centro», como dizia Scruton. Aliás, esta segunda máxima fere a democracia de morte e foi isso que Vance nos tentou explicar.
Assim, a crítica que tem sido dirigida ao discurso do número 2 dos EUA – a de que foi desadequada à ocasião – percebe-se, mas deve ser visto como uma chamada de atenção, um lembrete de que as matérias económicas e de segurança só podem florescer com uma base cultural e de valores forte. A questão suprema que agora se coloca é a seguinte: continuará a União Europeia adormecida, escudando-se em slogans vazios até à implosão, ou decidirá, por fim, arregaçar as mangas? Infelizmente, a primeira opção parece a mais provável.
Enquanto a Europa dorme
O discurso de Vance, concorde-se ou não, deveria ser uma chamada de atenção para uma Europa em estado de letargia.