Nunca me senti jornalista. No jornal as pessoas mais velhas tratavam-me por ‘Zé António’ e as mais novas por ‘arquiteto’ ou ‘diretor’. Como arquiteto senti-me um deus. Ver um sítio e imaginar para ali uma construção, desenhá-la, acompanhar a edificação, ver um edifício onde antes não havia nada e saber que vai ali ficar por umas dezenas de anos. Um jornal compra-se e deita-se no caixote do lixo no dia seguinte. Um jornalista é um funcionário que pode influenciar pessoas, mas não deixa uma marca, um marco no lugar.

Comecei a escrever nos jornais com 17 anos, por intermédio de Mário Castrim, no Diário de Lisboa Juvenil, que abria as portas aos mais jovens num suplemento cultural onde colaboraram pessoas como o António Mega Ferreira, o Júlio Henriques, o António José Teixeira, eu, o Manuel Raposo, a Alice Vieira, que é viúva do Mário Castrim, e outros mais que formaram uma geração de escritores e jornalistas. Depois colaborei em vários jornais, como o Diário de Lisboa, A Bola, o Espaço T Magazine, A República, o Portugal Hoje, até que um dia, em plena Praça do Rossio, em Lisboa, o Vicente Jorge Silva me convidou para ser colaborador do Expresso, onde eu já tinha longos artigos publicados e ele era chefe de redação.

Eu tinha trabalhado com ele no Comércio do Funchal, durante um período glorioso dirigido pelo Vicente a partir da Madeira, mas que rapidamente ganhou adeptos em círculos estudantis e intelectuais no Continente. Aqui havia o Notícias da Amadora, dominado pelo PCP, mas o CF tinha outra liberdade, outra respiração, outro andamento. Lá colaboraram o Mega Ferreira, a Helena Vaz da Silva e outros mais velhos, como o Eduardo Lourenço e o meu pai, António José Saraiva, que foi por quem aliás comecei a escrever no CF. O Vicente vinha de Paris, onde tinha tido um caso com a Teresa Rita Lopes, convidou-o para escrever, ele disse que não tinha tempo, mas que tinha um filho com jeito, que era eu.

De passagem por Lisboa, o Vicente telefonou-me e assim iniciei uma colaboração que durou vários anos e foi muito entusiasmante até ao 25 de Abril. Aí ganhei o gosto pelo jornalismo (crónica, sobretudo, e crítica política e social) e com o Vicente Jorge Silva aprendi a importância decisiva da independência. Nunca deixei de ser rebelde e de contestar as ideias feitas.
Qual era a ideia para o Expresso? Marcelo Rebelo de Sousa tinha saído para o Governo a convite de Francisco Pinto Balsemão e eu devia substituí-lo na Página 2, que era a mais emblemática. Recusei a ideia de imediato. Eu era arquiteto, trabalhava no ateliê de Manuel Tainha, perto do Hotel Sheraton, gostava muito do que fazia e a ideia de me tornar jornalista não me aliciava de todo.

Fiz então a contraproposta, um texto mais pequeno, dedicado não à análise da semana, mas a um tema específico. Ele aceitou. Havia de se chamar Temperatura Política, um nome anódino, mas depressa evoluiu para um mais provocatório: Política à Portuguesa. Foi um sucesso imediato, tornou-se o texto mais lido do Expresso, a ponto de eles acabarem com a métrica. Na altura, o diretor interino era o Augusto Carvalho, que tinha assumido o lugar com a saída de Marcelo Rebelo de Sousa, mas que nunca fora efetivo. Uma noite, no seu gabinete, propôs-me: «Já pensaste em ser subdiretor do Expresso?». Nunca tinha pensado, mas disse-lhe que podia pensar, embora dissesse que nunca tinha trabalhado como profissional num jornal. Era uma experiência. Pedi-lhe um mês. Ao fim disse-lhe que sim.

Nesse processo tive sempre o apoio do Vicente Jorge Silva. A redação era uma jaula de leões. Jornalistas muito experimentados com o ‘rei na barriga’. Além do Vicente Jorge Silva, o Joaquim Vieira, o José Júdice, a Maria João Avillez, o Benjamim Formigo, o Carlos Matos, a Madalena Martins, a Clara Ferreira Alves e ainda colaboradores como a Helena Vaz da Silva, António-Pedro Vasconcelos, Francisco Bélard, o Pedro d’Anunciação, etc. Eu repito – não tinha qualquer experiência de trabalho numa redação. Os dez primeiros anos foram penosos, depois as coisas acalmaram.

Tomei o pulso à redação e o jornal cresceu muito, da casa dos 50 mil para os 100 mil exemplares. Comecei a imaginar outro tipo de trabalhos como o Guia Expresso de Portugal, com todos os outros guias: do Melhor de Portugal, das Aldeias Históricas, da Boa Cama e da Boa Mesa, etc. E trabalhos mais culturais, como Os Lusíadas, comentados pelo meu tio, José Hermano Saraiva, e ilustrados pelo Pedro Proença, o D. Quixote, ilustrado pelo Júlio Pomar e com grafismo do Henrique Cayatte, e a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, ilustrada pelo artista macaense Carlos Marreiros. Foi um período muito criativo.

Até que surgiu O Independente, um jornal com muitas ideias e poucos princípios. Muitos pensaram que íamos ser engolidos; mas os Guias de Portugal, sobretudo, aguentaram-nos. Chegámos a imprimir 200 mil exemplares e o Paulo Portas deitou a toalha ao chão.

Eu achei que era tempo de fazer outra coisa: um jornal mais leve, concorrente do Expresso, e propus a Francisco Pinto Balsemão. Estava há muito tempo na direção do jornal e era altura de outra experiência. Falei-lhe do assunto num almoço no English Bar, no Estoril. Ele ficou de pensar e uma semana depois disse-me que isso seria dar «um tiro no pé ou um pouco mais acima». Eu disse-lhe então lealmente que ia procurar outro interessado.
Não participei nos contactos porque, sendo diretor do Expresso, não me parecia deontológico que o fizesse. Foram o José António Lima e o Mário Ramires que se encarregaram de falar com o Paulo Teixeira Pinto, na altura presidente do maior banco privado português, o BCP, que se interessou imediatamente. Formámos uma sociedade a quatro – o BCP, nós os jornalistas (com o meu primo Manuel Boto, que se entusiasmou logo pelo projeto, e a Ana Paula Azevedo), o Joaquim Coimbra, um empresário de Tondela, e o José Paulo Fernandes. O BCP forneceu um edifício na rua de São Nicolau, na Baixa de Lisboa. Fiz o projeto de lançamento publicitário, que foi um êxito: no primeiro número vendemos 170 mil exemplares e fizemos uma festa de arromba no Museu de Eletricidade, antiga Central Tejo. Estava lá Portugal inteiro. Uma pedrada no charco. Foi uma lufada de ar fresco.
Depois começámos a cair, não sei se por erros meus se por outra razão, mas todos os jornais começaram a cair em todo o mundo. A internet, a TV em direto tornaram os jornais em papel em boa parte obsoletos. Hoje há algum jovem a ler um jornal? Só os velhos. Neste processo construí boas amizades: o Mário Ramires, o Vítor Rainho, o José António Lima, a Carolina Silva, a Ana Paula Azevedo, a Teresa Oliveira. O Henrique Monteiro, que era o meu challenger e me substituiu na direção do Expresso, saiu um destes dias da mesa onde estava sentado para me vir falar. Também na política fiz amizades, embora saiba que aqui as amizades são sempre mais interessadas, mas Ramalho e Manuela Eanes, Cavaco Silva, Pedro Passos Coelho, julgo que me estimam verdadeiramente.

O livro Eu e os Políticos foi objeto de grande escândalo, foi tema de muitos programas de TV, mas hoje posso dizer que o único objetivo foi corresponder à verdade e contar o que sabia com alguns filtros que usei para não entrar na esfera pessoal, como por exemplo o abuso de drogas por certos responsáveis. Os inimigos que verdadeiramente tive foram pessoas que mostraram menos caráter, como José Sócrates; a contrario, julgo que encontrei pessoas decentes, corretas e sensíveis.

O SOL hoje continua a brilhar. É obra, quase 20 anos depois, num ambiente hostil onde os jornais caíram a pique. Mas é a prova da força de um projeto e da sua independência. Eu costumava dizer à redação: «Grande projeto, grande equipa, grande jornal». E cabe perguntar: quantos jornais em Portugal existiram durante tanto tempo, nesta época de declínio do jornalismo escrito? Mas atenção: quando este acabar, a confusão vai ser enorme. Muitas mentiras, as contradições, o ‘diz-que-disse’, a desonestidade. Esse tempo, aliás, já começou. Muita coisa se perderá, porque a imprensa escrita é um referencial de credibilidade, uma reserva de seriedade, um bastião.

Senti-me na charneira de uma época que viveu tempos gloriosos, de vacas gordas, e que vive hoje tempos difíceis, onde só os jornalistas corajosos vão resistindo às pressões económicas e das influências. Felizmente, sempre pude escrever com independência e fidelidade às minhas ideias. Nesse aspeto, os leitores podem confiar no que escrevi. Nunca fiz nada por encomenda para promover interesses obscuros. Bem hajam os que confiaram em mim. Não quero dizer uma despedida, o tempo o dirá se tiver condições para voltar a escrever.

Nunca me senti jornalista. No jornal as pessoas mais velhas tratavam-me por ‘Zé António’ e as mais novas por ‘arquiteto’ ou ‘diretor’. Como arquiteto senti-me um deus. Ver um sítio e imaginar para ali uma construção, desenhá-la, acompanhar a edificação, ver um edifício onde antes não havia nada e saber que vai ali ficar por umas dezenas de anos. Um jornal compra-se e deita-se no caixote do lixo no dia seguinte. Um jornalista é um funcionário que pode influenciar pessoas, mas não deixa uma marca, um marco no lugar.

Participei em alguns programas de televisão, em quatro Grandes Entrevistas da RTP, mas nunca achei que a TV fosse o meu meio. Trabalhei no centro de formação da RTP, na rua Francisco Baía, em Alvalade, tive convites para continuar, mas declinei pelas mesmas razões. Tive também um chefe de quem gostei muito, o Faria de Almeida. Curiosamente, sendo o meu meio a escrita – que já vinha do meu avô paterno, do meu pai e passou para os meus filhos –, ainda escrevo com esforço. Gosto de escrever mas sofro. Mas às vezes, ao ler o que escrevo, interrogo-me: ‘Mas fui eu que consegui escrever isto?’. Outras vezes pergunto-me: ‘Mas como pude ter eu escrito tão mal?’. São momentos.

Conheci através do meu pai Ferreira de Castro, José Cardoso Pires, Augusto Abelaira, Lyon de Castro, Sousa Tavares (pai), Orlando da Costa, Alexandre O’Neill. Talvez Ferreira de Castro, editado em todo o mundo, conseguisse viver da escrita, mas num tempo em que o papel e as referências desaparecem, quer na política quer na literatura, cada vez mais se vive de técnicas de marketing sem grande conteúdo.