Há dias, num jantar entre antigos colegas de escola, uma amiga de há muito, mulher de esquerda que nunca fora comunista, disse-me, para minha grande surpresa, que nestas eleições decidira votar no PCP. Razões? «É que não podem desaparecer», disse-me. «Fazem parte das nossas vidas; vê-los desaparecer seria perder algo de nós, da nossa infância, do nosso imaginário». Dei por mim a reconhecer que havia algo de verdadeiro no que dizia. Sorri, sem rebater o argumento, e a conversa rumou para outros destinos, entre piadas e copos. Mas pensei depois que, de facto, para aqueles que andamos pelos cinquenta anos, tendo nascido entre o estertor do Estado Novo e o dealbar da democracia, o sistema democrático adquiriu a forma cristalizada de uma hierarquia muito fechada de partidos, uma forma mantida por décadas e de cuja estabilidade temos dificuldade em afastar-nos. A democracia não é necessariamente assim. Não era assim que a vislumbravam as aspirações democráticas dos nossos pais. Também não será assim que certamente se afigurará, no futuro, aos nossos filhos. Mas a verdade é que, para a primeira geração que nasceu e cresceu em democracia, esta revelou-se uma espécie de entretenimento em que os poucos protagonistas em palco são jogadores cujas performances os comentadores televisivos e restante imprensa se ocupam a discutir e classificar; jogadores em algo semelhante a um campeonato futebolístico confuso em que, no mesmo campeonato, se disputam várias ligas e escalões.
Para aqueles que se aventuraram a gatinhar e dar os primeiros passos no momento em que o Estado português também os dava rumo ao socialismo, conforme o imperativo prescrito no nosso preâmbulo constitucional, a primeira liga do campeonato partidário foi reduzida a uma monótona final, disputada invariavelmente entre dois partidos cujas diferenças se reduziram, com o passar do tempo, à distinção entre nada e coisa nenhuma. Cada um deles visou desde sempre, a seu modo, um conhecido oxímoro: «socialismo em liberdade». A imagem de um campeonato assim disputado transformou as eleições legislativas portuguesas numa escolha fechada entre dois «candidatos a Primeiro-Ministro». Por isso, ao longo de décadas, com a imprescindível colaboração mediática, tudo foi preparado para que a grande massa dos votos fosse derramada docilmente no funil desta escolha. PS e PSD, demo-socialistas e social-democratas, habituaram-se a partilhar pelas respectivas clientelas os despojos do Estado português, revezando-se como regedores de uma sociedade domesticada e envelhecida, vivendo da sua alternância como daquelas mudanças que têm de ocorrer para que tudo fique na mesma. Quando as decisões políticas passaram a provir de Bruxelas e não de Lisboa, a escolha deixou definitivamente de reflectir visões do mundo ou decisões políticas para passar a ser entre os ocasionais administradores do mesmo statu quo.
Uma democracia nascente, porém, não poderia sobreviver se reduzida à simples alternância entre figuras simplesmente indiscerníveis. Ao campeonato da primeira liga, em que se disputava o administrador, houve que acrescentar uma segunda com menor visibilidade. A grande massa da população dedicaria o seu voto ao campeonato da primeira liga. Mas alguns reparariam que, no mesmo campeonato, estariam em causa também outras disputas. A segunda liga do campeonato seria habitada por ideologias mais ou menos desviantes do «socialismo em liberdade» constitucionalmente consagrado, mas ainda assim toleradas por uma democracia nascente que só excluiria o «fascismo», fosse ele o que fosse. Nela deveria haver lugar para quem defendesse a liberdade sem socialismo, como era o caso de conservadores e democratas-cristãos como o CDS. Estes, é certo, tinham-se atrevido a votar contra a Constituição de 1976, que destinava o país a uma «sociedade socialista», mas até poderiam ser úteis para estabilizar o sistema em momentos mais disruptivos. Por outro lado, nas longínquas décadas de 70 e 80, a democracia deveria também albergar quem defendesse o socialismo sem liberdade, ou o socialismo cuja liberdade espelhasse a singular concepção que dela tinham a tirania soviética e as ditaduras comunistas então acopladas em torno dela. Era o caso do PCP, para quem o sistema de partidos português, depois do 25 de Novembro e do fim da ameaça de guerra civil, reservara um lugar paradoxal: o lugar honroso de fundador de uma democracia burguesa pluripartidária que, no fundo, gostaria de derrubar se pudesse.
Por sua vez, remetidos para uma terceira liga, para um qualquer inócuo campeonato regional ou para uma liga dos últimos, estavam os inevitáveis grupos marginais de estudantes radicalizados, ou os seus sucedâneos, especializados em vociferar e entoar loas ao maoísmo ou à quarta internacional, à «experiência albanesa» ou a outras igualmente criativas. Foram estes que, a partir da última década do século XX, após a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética, iniciaram um lento percurso de esvaziamento do PCP, tornando-se no seu ersatz e substituindo a sua rígida doutrina da luta de classes pelo populismo pós-moderno das micro-causas fracturantes, das políticas identitárias e dos wokismos. Com a emergência e o início da expansão da cultura woke, «nasceu uma estrela»: uniram-se no Bloco de Esquerda e vislumbraram a possibilidade de ascender no campeonato democrático. Certamente nunca teriam o apoio popular que o suporte mediático se encarregava de compensar. Certamente não disputariam a primeira liga, onde PS e PSD deveriam conservar lugar cativo. Mas poderiam substituir o empoeirado e declinante PCP, bem como colaborar em soluções governativas à esquerda. Foi esta colaboração inovadora que a experiência da Geringonça de António Costa permitiu, numa experiência que no PCP suscitou um fugaz inebriamento senil. É a ânsia por esta colaboração que hoje anima o Livre, a esquerda verde e europeísta, responsável agora pelo previsível declínio do Bloco: uma esquerda que abdicou das suas cores, origens e memórias para tentar a sua sorte como formadora da «visão do mundo» dos jovens inclinados ao socialismo. A autofagia de todos estes sucessores do comunismo acaba por despertar nostalgias como as da minha amiga. Entre o PCP e o Bloco de Esquerda, ou mesmo entre o Bloco e o Livre, a diferença é sempre «a que existe entre a verdadeira madeira e o tabopan». Tristes tempos os que vivemos, em que é sempre o tabopan a substituir a madeira.
E em relação à direita, o que anunciam estes tempos? Pensei, aquando do comentário da minha amiga, que não seria por acaso que, tal como aconteceu em França, na Itália ou na Espanha, também em Portugal se verifica o interessante processo de uma transferência directa do voto no PCP para a direita a que hoje se chama nacional ou iliberal. Mostram-no, entre muitas outras coisas, os resultados obtidos pelo Chega no Alentejo, no ano passado. Esses foram, na verdade, o dado mais revelador de uma mudança estrutural da democracia portuguesa. É que, após o 25 de Abril, com a perseguição, prisão e exílio de muitos dos seus militantes e dirigentes políticos, após a radicalização do processo revolucionário português entre setembro de 1974 e novembro de 1975, a direita portuguesa foi posta fora de jogo e excluída dos campeonatos nacionais. Nem os campeonatos distritais foi autorizada a disputar. Assim, a direita possível tornou-se tímida, centrista, convencional. Aprendeu a sobreviver convertendo-se naquilo a que uma expressão feliz de Jaime Nogueira Pinto chamou a «direita da esquerda». Em consequência disso, durante muito tempo, o PSD, ao disputar o campeonato da primeira liga, tratou de acolhê-la, diluí-la e inibi-la, tornando-a invisível e também inócua. Quando a direita, finalmente, se libertou desta tutela, seria inevitável que levasse consigo, como marca de origem, o carácter ainda algo anódino e indefinido que o PSD lhe emprestou. É ainda essa a fase em que estamos. É, pois, de esperar que, para a consolidação do seu crescimento, a direita assuma um processo de transformação que se afigure o exacto inverso daquele que a esquerda sofreu. Nas últimas três décadas, a esquerda radical foi esfarelando o comunismo, na esperança de o tornar palatável para jovens socialistas. Instalou-se dentro do sistema, promovida pela indústria mediática e cultural, e insinuou-se ao PS, entrando dentro dele e transformando a madeira em tabopan. Quanto à direita, saindo do tabopan indefinido que é o PSD, terá de fazer o seu percurso fora dele. Tal significa ler, estudar, pensar e falar mais livremente, fora dos espartilhos que há muito se lhe impõem. No momento em que o PSD se reduz a um híbrido errático e o CDS à presença espectral que o acompanha, significa fazer um percurso inverso ao da esquerda. Significa adquirir maior solidez e mais consistência. Significa ser mais madeira e menos tabopan.
Professor Universitário