Decisões trágicas

A Europa deve cultivar uma parceria crítica com a América – contestar quando for preciso, mas cooperar em investigação, defesa e comércio.

Quando o futuro se anuncia numa encruzilhada, a História oferece espelhos inapeláveis. Em 1453, o Basileu de Bizâncio recusou pagar a Orban pela construção de um canhão «demasiado caro». O artífice vende o a Maomé II e, poucos meses depois, essa artilharia abre a brecha por onde Constantinopla cai. Décadas mais tarde, o conselho régio português classificou a rota ocidental de Cristóvão Colombo como devaneio impraticável. A Espanha arriscou, colheu continentes e metais, enquanto Lisboa ficou confinada ao caminha africano que depressa lhe escapou. Cinco séculos mais adiante, a Decca Records rejeita quatro rapazes de Liverpool – «grupos de guitarras estão em declínio», decretou o censor de serviço – e perde a maior mina de ouro cultural do século XX. Em 2000, a Blockbuster, rainha dos alugueres vídeo, ri se da proposta de parceria da ainda jovem Netflix; dez anos depois declara falência, esmagada pelo streaming que se recusou a abraçar.

Estes quatro episódios, separados por tecnologias, geografias e mentalidades, convergem numa parábola única: a incapacidade de discernir o fio do devir quando ele surge disfarçado de risco ou custos de curto prazo. O erro não foi apenas tático; foi imaginativo. Faltou-lhes o «instinto de possibilidade» que Robert Musil atribuía às sociedades criadoras. Em cada uma destas recusas abundou o mesmo reflexo de autoproteção – o receio de comprometer recursos, prestígio ou modelos de negócio consolidados – e germinou, irónica, uma consequência multiplicada contra o arrogante decisor.

Hoje, a Europa em geral – e Portugal em particular – debate se entre aliar ou afastar dos Estados Unidos. O debate sobre a aliança transatlântica, por ressentimentos pós iraquianos e pela nostalgia de uma autonomia estratégica mal definida, arrisca repetir essa miopia secular. Malgrado as imperfeições norte americanas, é ainda na economia, na ciência e na defesa dos EUA que se concentram as fontes de inovação que estruturam a ordem mundial. A União Europeia, envelhecida e fragmentária, necessita desesperadamente desse oxigénio tecnológico e militar, tanto quanto o Império Bizantino necessitava do artífice que desprezou.

Se Portugal, em nome de um neutralismo sentimental, se afastar do investimento transatlântico em semicondutores, defesa, energia barata ou inteligência artificial, corre o risco de reconstruir o seu próprio 1485: ver passar as caravelas do futuro carregadas de dados e patentes sem jamais lhes tocar o convés.

Não se trata de subserviência, mas de clarividência. A Europa deve cultivar uma parceria crítica com a América – contestar quando for preciso, mas cooperar em investigação, defesa e comércio. A alternativa é contemplar, impotente, a emergência de novos impérios digitais e geopolíticos que não partilham o nosso léxico de liberdades.

Portugal, periferia de si mesmo desde que fechou a porta a Colombo, dispõe hoje de um trunfo que Bizâncio já não possuía: participa numa União que, aliada aos Estados Unidos, continua a somar mais de metade do PIB e da I&D globais. Renegar essa ligação seria, pois, desperdiçar não só a oportunidade de partilhar o lucro, mas de caminhar na frente de uma modernidade que de qualquer modo nos atravessará. Em política internacional, como na música ou no vídeo on demand, não há prémio para o proverbial ‘eu avisei’. Há apenas vencedores que ousaram apostar no novo e vencidos que acreditaram poder congelar o tempo.

Por isso, antes de erguermos trincheiras de protecionismo ou discursos de ressentimento, recordemos a lição dos desastres anunciados: quem vira costas ao parceiro decisivo acaba, invariavelmente, a falar lhe pelas costas… a partir das ruínas do seu próprio passado.

Os asiáticos acreditam que o século XXI será deles. Os americanos veem esse cenário como plausível, mas não inevitável. A Europa pode escolher arredar-se da competição e sozinha decair fora das grandes decisões globais. Ou ligar-se aos USA e criar um bloco onde a liberdade, democracia, cristianismo e progresso económico ainda têm espaço. Espero que a escolha não seja trágica.