António Barreto, como poucos, trouxe recentemente para o debate público a realidade da atual campanha legislativa, classificando-a, com propriedade, como mais uma oportunidade política — desperdiçada. O conhecido sociólogo, que já esqueceu o que muitos ainda nem aprenderam, descreveu com eloquência e lucidez a forma como o País está a ser arrastado para mais um exercício eleitoral sem alma, sem ideias e sem coragem. Não ouso imitá-lo, mas acompanho-o sem reservas no diagnóstico: esta campanha tem sido marcada por uma lavagem de carácter na praça pública, uma sucessão de silêncios estratégicos sobre os problemas reais do País e do Mundo, preenchida por frases feitas e encenações que pouco esclarecem quem observa e ainda menos convencem os indecisos.
Em vez de um confronto sério de ideias sobre Economia, Defesa, Saúde, Educação ou Justiça, assistimos a um desfile de slogans, ataques ad hominem e estratégias de marketing esvaziadas de substância. Substitui-se o conteúdo pela performance, e evita-se o erro com tanto zelo que se abdica da proposta.
Este vazio discursivo é, em si, profundamente revelador. A política, que deveria ser um exercício de visão e responsabilidade, tornou-se numa arte de cálculo puro. A comunicação substituiu o conteúdo. O medo de errar tornou-se maior que a vontade de propor. E os candidatos, mais do que liderar, parecem temer a própria sombra. A falta de qualidade da oferta política reflete-se num país fragmentado, desiludido e exausto.
A abstenção, rotineira nas últimas eleições, não é apenas um sinal de protesto: é o espelho de um povo que começa a acreditar que votar já não serve para nada. E essa é talvez a maior ameaça à democracia: a erosão da fé na sua utilidade. Quando se perde a confiança na política, abre-se espaço ao cinismo, ao populismo, ao extremismo e ao ruído. E é isso que está em jogo. Não se trata apenas de escolher quem governará. Trata-se de impedir que o vazio se torne a nova normalidade.
Mas como votar? Em quem? Em que ideia de futuro? Os partidos rejeitam abrir-se à democracia interna, abominam eleições primárias abertas, evitam a renovação dos seus quadros e bloqueiam a reforma da lei eleitoral. O resultado é conhecido: listas fechadas, candidatos escolhidos por fidelidade, círculos eleitorais que inviabilizam partidos emergentes. Votamos numa marca sem sabermos o que está dentro do embrulho.
Os cenários pós-eleitorais são tudo menos promissores. Uma maioria absoluta parece improvável. Uma coligação à esquerda exigiria cedências a radicalismos que já provaram não funcionar. Uma aliança à direita poderá implicar compromissos com forças igualmente radicais, que não escondem a sua impreparação para governar. O risco de bloqueio político é real. E se assim for, estaremos condenados a novas eleições — onde tudo se repetirá, talvez para pior.
E aqui chegados, perguntarão: como sair deste estado da arte? Se os partidos instalados que estão nesta lógica do poder pelo poder, não se reformam nem aceitam ser reformados, há que criar disrupção do sistema. Criar disrupção no sistema político-partidário português — ou em qualquer democracia madura, presa a dinâmicas de rotatividade sem renovação — exige uma combinação de coragem institucional, mobilização civil e inovação legislativa. Não entendam disrupção como sinónimo de caos. Significa sim, romper com a rotina sem destruir a estrutura. A democracia portuguesa não precisa de ser substituída — precisa de ser reanimada com ideias, métodos e pessoas que ainda não desistiram. Mas essa disrupção tem de vir de fora para dentro, com ética, inteligência e persistência. Há que romper o ciclo vicioso atual, através de movimentos cívicos, ancorados na realidade. Cidadãos reconhecidos pela sua integridade e conhecimento preocupados não em conquistar votos, mas sim em conquistar respeito e futuro para o País. Há que criar pressão de fora para dentro, porque dentro sentem que estão bem assim. Nenhum partido atual da governação está disponível para um pacto ético interpartidário com compromissos mínimos: menos cargos e mais competência, rotatividade no exercício político, transparência no financiamento, eleições internas abertas, primárias obrigatórias, exclusão de condenados por corrupção, mérito em substituição do compadrio, entre outros. Nenhum está disponível para propor uma iniciativa legislativa no Parlamento para discutir e votar um novo modelo de sistema eleitoral misto, que combine círculos uninominais com compensação proporcional nacional, no mínimo. Este sistema já existe com sucesso na Alemanha ou na Nova Zelândia, e poderia ser proposto com base num modelo testado. Disrupção no sentido de obrigar o sistema a abandonar o “partidismo” tradicional, dos mesmos de sempre, dos que apenas se servem dele e conseguir uma nova democracia que atue como ponte entre os cidadãos e o Estado e conquiste aqueles que querem servir o País e saibam colocá-lo como modelo na Europa. Veremos o que sai de mais este ato eleitoral, nesta campanha que, como Barreto a classificou, de “mais uma oportunidade perdida”.
Para já, neste contexto, resta ir votar com a certeza que votar é mais do que um direito: é um dever estratégico. Para muitos, será uma escolha difícil, feita com mais dúvidas do que certezas. Votar no “mal menor” não é desistir: é resistir. É triste ter que o reconhecer, mas nada mais resta senão escolher, com a lucidez possível, quem ao menos possa garantir alguma estabilidade, alguma decência e alguma capacidade de compromisso. Porque se não votarmos, outros decidirão por nós. E talvez sejam pessoas que não partilham os nossos valores, os nossos receios ou as nossas esperanças. A democracia está longe de ser perfeita, mas continua a ser o melhor instrumento para impedir que o país se entregue à demagogia e ao desespero.
No domingo, votemos. Mesmo que com raiva. Mesmo que com desalento. Mesmo que no mal menor, mas com a consciência de que ficar em casa nunca será um ato neutro.
Coronel