Nos últimos meses o país assistiu ao debate público em torno da segurança pública, depois de em Janeiro a PSP ter divulgado números inusitadamente extraordinários de descida da criminalidade geral em 12,6% e violenta e grave de 10.4%. Os números então avançados pareciam contradizer o clamor relativo à perceção de um aumento da criminalidade que o presidente da câmara de Lisboa havia iniciado no seguimento dos acontecimentos da rua do Benformoso, exigindo mais competências para a sua polícia municipal e mais polícias para a capital. Havia alguma expectativa quanto à publicação do RASI relativo ao ano de 2024 depois da atenção mediática dada ao assunto e a consequente polarização partidária já normal no que respeita à segurança. Enquanto uns clamavam tratar-se apenas de perceções, outros garantiam que se assistia a um aumento real do crime que se sentia nas ruas. O RASI foi entretanto publicado e os números agradaram à versão mais otimista observada que foi uma diminuição da criminalidade geral de 4.6% e um aumento de 2.6% do crime grave e violento. Aparentemente está tudo bem. Mesmo o aumento da criminalidade grave e violenta parece não ter tido reflexo nos fazedores de opinião e os próprios partidos parece terem aceitado os números finais. Em pleno período pré eleitoral seriam de esperar reações mais extremadas.
A proatividade policial
Aqui e acolá, sobretudo nos meios mais especializados, foi-se entretanto murmurando que os números da criminalidade de 2024 deviam ser vistos com alguma preocupação já que os mesmos foram muito condicionados pela quebra da camada proatividade policial, só comparável aos tempos da pandemia. O impacto é facilmente verificável em três evidências. Em primeiro lugar, durante cerca de seis meses, os policias das forças de segurança baixaram os braços na sua atividade em protesto com a desigualdade criada no que respeita a remunerações e suplementos atribuídos pelo governo à polícia judiciária. A situação acabou por sair do controlo dos Comandantes e dos próprios sindicatos assumindo nalguns casos uma natureza inorgânica. Cedo se percebeu que o impacto seria enorme nos crimes e atos processuais que dependem exclusivamente da ação policial. A proatividade policial tinha vindo a crescer de forma significativa desde 2020 – 9% em 2021, 22,5% em 2022 e 11.3% em 2023 -, num acumulado de 48.8% que traduz um retomar da normalidade operacional pós pandemia e um afinar do planeamento cada mais determinado por informações policiais (inteligence). Neste cenário, a queda de 24,4 % de 2024, correspondendo a 14.000 crimes, constituiu um contraciclo da proatividade policial difícil de ignorar no RASI do ano passado. Em segundo lugar, o protesto policial atingiu os números do RASI de forma contundente em particular as ações que mais dependem da ação da PSP e GNR. Menos 11% de buscas, 10.6% de detenções, 10.6% de apreensões de veículos, 15.4% de interceção de comunicações, 22% na fiscalização de armas, 16.8% na apreensão de armas, 39.2 na fiscalização ambiental, e a não menos reveladora redução de 6.7% nas agressões a agentes e 9.5% de ferimentos. Por último, nos números relativos a estupefacientes, não sendo a análise tão direta o impacto não deixa margem para dúvidas com os crimes de tráfico a caírem 28.3%, as apreensões 24.3% e as detenções 36%. Estes números contrastam com a própria perceção da PSP que optou no ano passado por reorganizar a estrutura de investigação em Lisboa para fazer frente “aos focos de tráfico que já não eram visíveis desde 2014, mas que começaram a surgir no pós-pandemia” (Rui Costa, DN, 19MAR25). Provavelmente, terá de igual forma contribuído para esta diminuição a alteração legal de que só deve ser promovido o procedimento criminal por tráfico quando alguém tiver na sua posse o correspondente a mais de 10 dias de consumo pode consistir num mero propósito de consumo e assim cair no regime de contraordenações. Os órgãos de polícia criminal devem comunicar ao MP que depois decidirá, tal como aliás já acontecia. Neste caso, terá que ser atribuído NUIPC contando assim de imediato para a contabilização estatística. Assim, tendo em conta esta realidade, não é possível perceber qual o impacto para a estatística de 2024, suspeitando-se que não será tão responsável como a ausência de proatividade.
A criminalidade grave e violenta
Segundo o RASI, o crime grave e violento terá aumentado 2,6%, correspondente a mais 363 crimes. Tal variação seria considerada normal num cenário em que variações positivas/negativas podem ser consideradas razoáveis com números absolutos relativamente baixos. Releva neste caso que o crime de resistência e coação sobre funcionário baixou 303 crimes. Tal diminuição decorre obviamente da menor atividade das polícias, principalmente na atividade rodoviária, e do trabalho de patrulha que recorrentemente deteta movimentos na via pública de pequeno tráfico. Havendo uma diminuição de 23.5% de detenções por todos os tipos de crime é inevitável que este crime também diminua já que muitas destas são decorrentes do crime de resistência e coação. Resumindo, não fora o baixar de braços das forças de segurança durante largos meses de 2024 e teríamos um número da criminalidade geral a rondar -0,1%, bem diferentes dos animadores -4,6% e na criminalidade grave e violenta um aumento de 4.7%, em vez dos 2.6%, isto não especulando sobre outros impactos indiretos que inevitavelmente surgem numa situação anómala como a que se viveu.
O RASI e as perceções
No final de 2024 a discussão político-partidária abriu uma barricada entre esquerda e direita, a que se viria a juntar o governo, sobre perceções de segurança. De um lado, clamava-se que o país continua a ser um dos países mais seguros do mundo, e que não hã razões para alarmes nem para certas operações como as que aconteceram no Martim Moniz, e Rua do Benformoso. Do outro, havia evidências que há alterações significativas nos padrões criminais e que isso justifica medidas mais securitárias e uma maior presença de polícia na rua, juntando-se a este debate o presidente da Câmara Municipal de Lisboa exigindo mais competências para a Polícia Municipal. Perceções e crime real podem andar separados, principalmente quando as variações criminais são pouco acentuadas. De uma forma geral, variações objetivas significativas em certos crimes podem levar também a variações nas perceções. As perceções podem influir no sentimento de insegurança, ou seja, a perceção de que aquele crime pode assumir-se como um risco para o meu modo de vida, para mim ou para aqueles que me são queridos. Num segundo plano, a perceção pode materializar-se na preocupação pelo fenómeno criminal do país, não percecionado como uma ameaça pessoal direta “de que determinado crime me pode atingir”. Portugal não tem nenhum instrumento fiável para medir o sentimento de segurança que permita fazer análises longitudinais, nem sequer existem inquéritos de criminalidade auto revelada que permita perceber as cifras negras da criminalidade em Portugal. Em 2024 o padrão criminal do país pode assemelhar-se em grande medida ao cenário de 2015 em muitas tipologias, e olhando por esse prisma parece não existir grandes razões nem para um exacerbar do sentimento de segurança nem para excessiva preocupação com o crime, sobretudo se pensarmos que no mesmo período a população residente aumentou quase um milhão de pessoas. Também é certo que a pandemia ajudou e muito a baixar de forma consistente os números em muitos dos crimes que têm impacto sobre a vida das pessoas, como roubos e furtos de propriedade pessoal. Olhado noutro prisma, partindo de uma base muito baixa, como foi o caso dos números da pandemia, o certo é que existe uma tendência para o aumento da maioria dos crimes desde essa data que ajuda a modelar o sentimento de segurança – o medo que determinado crime possa acontecer a mim e aos meus – quase todos eles incluídos no agrupamento de crimes contra as pessoas. Os roubos por esticão, a residências (especialmente danosos em termos de perceção), a estabelecimentos comerciais, em transportes públicos, de viaturas e em estabelecimentos de ensino destacam-se com um enorme potencial de influir na perceção pública porque todos eles têm o potencial de serem percecionados para além de uma mera preocupação com o crime e influindo na esfera pessoal. É certo que os números absolutos não na maioria dos casos expressivos, mas a sua capacidade de impactar as perceções é grande, sobretudo quando alavancados pelas redes sociais e pelos Media. Um segundo fator a ter em conta está relacionado com a delinquência grupal e juvenil, que segundo o relatório indica “os crimes são cada vez mais graves e praticados por indivíduos cada vez mais jovens”. A forma de registo do RASI no que respeita à criminalidade grupal e juvenil não desgrega as tipologias de crime sobre o qual incide estas formas de criminalidade, especialmente no que respeita a crimes contra a vida e integridade física, o que seria útil para eventuais políticas públicas que venham a ser desenhadas. Sendo um fenómeno maioritariamente metropolitano, a eficácia na abordagem deste tipo de criminalidade incide em múltiplos tipologias criminais de ordem púbica, tráfico de estupefacientes, roubos, furtos, violência física, sexual, etc. O relatório refere o trabalho das equipas mistas de prevenção da criminalidade mas dá poucas evidências do trabalho realizado, constatando-se que a criminalidade grupal aumentou 48% desde 2020 e a criminalidade juvenil aumentou 79,1% desde 2021, sendo a única tipologia em que o RASI refere nacionalidades. Por último, o grupo dos crimes sexuais com as violações (20.7%), abuso sexual de crianças (38%), pornografia de menores (13.8%) os quais, obviamente, tendo em conta a vulnerabilidade das vítimas, assumem sempre enorme relevância pública tanto no sentimento de segurança como na preocupação com o crime.
Conclusão
É inegável o impacto que a proatividade policial teve nos números do RASI de 2024, escondendo aumentos reais superiores aos apontados nos grafismos finais, que no entanto acabaram por vencer nos Media. No entanto, o RASI não dedica, incompreensivelmente, qualquer tipo de análise a este facto que é determinante para explicar os números finais. Trata-se do único documento técnico existente no país sobre segurança e não deixa de ser dececionante que o mesmo não faça a referência aos factos que são evidentes e indesmentíveis. Embora com contornos diferentes dos da Pandemia, os números mostram de forma clara o impacto que a PSP e GNR podem ter no retrato criminal do país e que os números, sem serem alarmantes devem ser alvo de uma análise menos ligeira do que aquela qua aconteceu nos Media em geral. Os crimes registados, particularmente na criminalidade grave e violenta, grupal e juvenil (responsável em grande parte pelo aumento da anterior, e dos crimes sexuais ou relacionados, devem de facto preocupar a cidadania e os responsáveis políticos. Não fará muito sentido comparar a situação criminal nacional à década de 80 em que o país era realmente inseguro em múltiplas dimensões. A epidemia da cocaína e heroína descontrolada, indiretamente responsável por furtos, roubos e disrupção familiar bem como o clima pós revolucionário caracterizado pela violência política e por demasiadas armas na posse de particulares não pode ter qualquer tipo de comparação posterior. As últimas duas décadas foram caracterizadas por uma diminuição estável de quase todas as tipologias de crime que impactam diariamente a vida das pessoas e as suas perceções. A pandemia fez cair as cifras para níveis históricos e seria inevitável que os números voltassem a subir para os níveis médios das duas últimas décadas, sobretudo acompanhado de uma verdadeira explosão populacional a viver em muitos casos em condições precárias. Estaremos neste momento a viver um período de aumento inevitável da criminalidade desde 2020, com especial incidência nas grandes áreas metropolitanas de Lisboa, Porto, Setúbal e Braga. As perceções têm memória curta e o cidadão comum tende a fazer comparações de curto prazo daí, especulativamente, podermos estar a assistir a uma maior sensibilidade e preocupação para o fenómeno criminal que em 4 anos recuperou níveis anteriores, especialmente nos crimes que impactam mais os cidadãos, os media e as redes sociais. Não havendo estudos sobre a matéria, é provável que o aumento abrupto desde 2020 esteja a moldar a preocupação social com o crime e, de forma mais localizada, no que respeita às metrópoles de Porto/Braga e Lisboa/Setúbal a um aumento do sentimento de insegurança, dando-se assim razão aos que dizem que as perceções são importantes e parcialmente aqueles que afirmam que as perceções contrastam com a realidade. Uma última nota para a metodologia utilizada que ao incluir mais entidades este ano mais parece um relatório de atividades em que cada instituição aposta tudo em mostrar os seus feitos, na maioria das vezes com muito pouca relevância. O RASI é o único instrumento existente no país de carácter analítico passível de ser usado por universidades, partidos, comentadores, jornalistas, entre outros. Seria de esperar uma maior aposta na vertente analítica porque é essa que releva e que dá valor acrescentado aos números apurados pela DGPJ. Por exemplo, muitos fenómenos criminais extremamente relevantes aparecem descritos numericamente mas sem qualquer explicação analítica, noutros há textos analíticos, mas não são publicados dados que confirmem algumas conclusões ou afirmações produzidas.
Superintendente-chefe da PSP