O resultado destas eleições não surpreende. Está de acordo com a atmosfera geral do tempo: uma atmosfera inquinada, doente, por demais irrespirável. É o deus-dinheiro, são os interesses de cúpula, são as carreiras unipessoais, é a venda da alma seja por que preço for, é a construção de um país à beira dum precipício. Fatal. São os canais de televisão vendendo a alma e os comentadores desvirtuando, manipulando, doutrinando – o poder do dinheiro é global, universal, cósmico. Não compra, porém, a vida, a eternidade. No fim, cada um terá, por muito que tenha guardado o retrato como Dorian Gray, de se confrontar com o seu monstro. Nenhum aventureiro de hoje que trai os seus concidadãos escapará a esse espelho: quem foste tu, André? Que fizeste em nome dos outros? Quando foi que a tua alma se enlameou? Qual a razão da tua desmedida ganância? Que ódio te envenena as palavras e o sangue?
Há um poema de Sophia de Mello Breyner que devemos lembrar neste tempo de novos combates pela liberdade – a liberdade que devemos à nossa consciência, que devemos aos nossos filhos, que devemos aos nossos pais. O poema é este:
Nestes últimos tempos é certo que a esquerda fez erros
Caiu em desmandos confusões praticou injustiças
Mas que diremos da longa tenebrosa e perita
Degradação das coisas que a direita pratica?
Que diremos do lixo do seu luxo – de seu
Viscoso gozo da nata da vida – que diremos
De sua feroz ganância e fria possessão?
Que diremos de sua sábia e tácita injustiça
Que diremos de seus conluios e negócios
E do utilitário uso dos seus ócios?
Que diremos de suas máscaras álibis e pretextos
De seus fintas labirintos e contextos?
Nestes últimos tempos é certo a esquerda muita vez
Desfigurou as linhas do seu rosto
Mas que diremos da meticulosa eficaz e expedita
Degradação da vida que a direita pratica?
É um poema de O Nome das Coisas, datado de julho de 1976. Julgo que é um poema oportuno, uma vez que, depois destas eleições, é de defesa da democracia que temos de falar, assumindo, em toda a linha, que o resultado reflete o ressentimento de muitos portugueses que, ao longo dos últimos 20 anos, se sentiram traídos por partidos que, sendo de esquerda, se aproximaram de tal modo do centro que acabaram por se descaracterizar. É o caso do PS. O discurso da tolerância para com as políticas de uma direita nunca deu resultado. Que o diga o PS Francês. Mesmo o PSD não está livre de cair no rolo compressor do ódio do venturismo. Cedo ou tarde, em nome da ‘estabilidade’, trocará o ‘não é não’ pelo ‘não é sim’. E isso irá acontecer quando Montenegro se vir de novo envolvido em novo escândalo, coisa que o Chega não deixará de perseguir para ‘matar’ a social-democracia como diz ter matado o «partido de Álvaro Cunhal».
É que foi essa deriva direitista nas fileiras de um PS empapado no poder que acabou por levar à transferência de mais de um milhão de votos que, antes, pertenciam ao eleitorado socialista. Perguntemo-nos: de que valem os labirintos e as fintas, a nata da vida, a feroz ganância?
Mas, como se lê no poema de Sophia, a questão não é só a desfiguração do rosto da esquerda. A questão é mais profunda: é Portugal que se está degradando e desfigurando. Imitando os tiques trumpistas, macaqueando os jeitos de Milei, há uma classe política que escarnece da democracia saída do 25 de Abril não porque detestem o que Abril representa, mas apesar do que Abril representa. Esta elite provinciana e bestial, no fundo, mirando-se no espelho daqueles que não traíram Abril, sabe que é a degradação das coisas aquilo que certa direita pratica. Ainda que podendo ir à missa no dia de eleições, o Duce lusitano, lá bem no fundo sabe que voga no ‘Viscoso gozo da nata da vida’ e que é a ‘ganância’ feroz e a ‘fria possessão’ o que anima o seu sequioso modo de perseguir o poder. Ventura não tem nada para dar ao país, a não ser os ‘conluios e negócios’. Também o partido de Sá-Carneiro e de Balsemão, se perderá nas ‘máscaras álibis e pretextos’ de um Chega que, no limite, está ao serviço dos interesses das oligarquias europeias, das políticas que visam decapitar os povos europeus em nome do chorudo negócio: a guerra.
Ventura quer que o país de Abril se transforme em algo que oscile entre um Estado Policial e uma república dos ananases para melhor governar no meio da chafurdice de um povo que será esmagado, controlado, empobrecido, mais uma vez traído e mais uma vez vendido. O problema é, de facto, de traição histórica: mentindo aos portugueses a todo o momento e a todo o instante porque, verdadeiramente, a Ventura (um suburbano que detesta a cultura, a fraternidade entre povos, que terá sido, provavelmente, vítima de muito bullying na escola, em Rio de Mouro, em Mem-Martins) só lhe interessa a ‘meticulosa eficaz e expedita’ degradação da existência que ele, na sua existência, já pratica. Tese: O pobre de ontem é o fascista de hoje.
Perante isto, que fazer? Escrever poesia. Ler poesia. Frequentar os livros e o cinema, as artes e, todos os dias, fazer pedagogia contra a ‘sua sábia e tácita injustiça’ daqueles que, manipulando os seus ingénuos, ressentidos e atraiçoados eleitores, apenas têm como fito viver ‘do lixo do seu luxo’.