Querida avó,
Neste ano em que se celebra o centenário do guitarrista Carlos Paredes, dei conta de que ainda não falamos deste nome incontornável da cultura portuguesa.
Para ficar a saber mais sobre a sua vida e obra, tenho ido a inúmeras exposições e tertúlias, que se têm organizado um pouco por toda a cidade de Lisboa.
Carlos Paredes foi um dos mais importantes e influentes músicos portugueses do século XX. Criador de um repertório original que levou ao mais alto nível as possibilidades expressivas da guitarra portuguesa. Influenciou distintas gerações de músicos nacionais e internacionais, contribuindo para a popularização deste instrumento junto de vastas audiências. O seu legado, pleno de memória e modernidade, ocupa um lugar central no nosso património cultural.
No mês em que festejamos a Liberdade, a Câmara Municipal de Lisboa comemorou também o centenário do nascimento de Carlos Paredes, com um grande concerto na Praça do Município, que gostei imenso.
Como sabes, para além de ter sido um grande guitarrista e compositor, Carlos Paredes foi um grande defensor da liberdade, da democracia e outros valores conquistados em abril de 1974. Foi sem dúvida o guitarrista do povo.
Nos testemunhos que ouvi da Luísa Amaro, do Carlos Alberto Moniz, e de tantos outros que privaram com Carlos Paredes, deu para perceber tinha também um humor corrosivo.
Enquanto te escrevo esta carta, oiço os CD’s de Carlos Paredes como “fonte de inspiração”. Fazem parte do livro Carlos Paredes – A guitarra de um povo, a edição centenária escrita por Octávio Fonseca.
Este ano tenho oferecido, aos mais novos, o livro O meu primeiro Carlos Paredes, da autoria de José Jorge Letria e Hélder Teixeira Peleja. O livro fala de uma guitarra pela qual um menino se apaixonou.
Obrigado, Carlos Paredes.
Bjs
Querido neto,
Como deves calcular, sempre fui muito amiga do Carlos Paredes, que entrevistei inúmeras vezes, e da Luísa Amaro, de quem tenho imensas saudades.
Carlos Paredes foi uma das figuras mais marcantes da cultura portuguesa do século XX, particularmente no campo da música. Tocador exímio de guitarra portuguesa, elevou este instrumento a novos patamares de expressão artística, rompendo com o uso tradicional ligado ao fado e criando uma linguagem própria, quase poética e profundamente emocional.
Ajudou a redefinir a identidade cultural portuguesa. A sua música era instrumental, mas conseguia transmitir sentimentos intensos de saudade, resistência, esperança e liberdade. Em tempos de repressão, como durante o Estado Novo, a sua obra oferecia um espaço de introspeção e até de contestação silenciosa. A sua arte transcendeu fronteiras sociais e políticas, tornando-se símbolo de união e de orgulho nacional.
Embora não fosse um político, Carlos Paredes teve um papel simbólico importante na luta pela liberdade. Foi militante do Partido Comunista Português, o que lhe custou, durante a ditadura de Salazar, cinco anos de prisão (1958-1963). Após o 25 de Abril, tornou-se um ícone da liberdade e da resistência. Nunca usou a música para promover ódio, mas sim para inspirar a liberdade e a dignidade humana – valores profundamente ligados à democracia.
Infelizmente, nos últimos anos de vida, Carlos Paredes foi afetado por uma doença neurológica degenerativa. A sua retirada da vida artística foi silenciosa e digna, mas dolorosa para quem o admirava. Morreu em 2004, deixando um vazio difícil de preencher no panorama cultural português.
Ainda bem que o meu amigo José Moças publicou esse belíssimo livro que é um testemunho profundo da vida e obra de um artista cuja guitarra ecoa a alma de um povo.
Bjs