O fotógrafo profeta

Sebastião Salgado revelou-se um profeta visual que, com um apuro estético incomum, usou a fotografia como instrumento de denúncia e sensibilização

Num mundo saturado de imagens fugazes, há fotógrafos que, desvelando realidades ignoradas e, por vezes, intuindo o que está por vir – como se as suas objetivas tivessem algo de oracular – transcendem o instantâneo. O brasileiro Sebastião Salgado (1944–2025), recentemente falecido, foi um desses raros casos. Com uma obra marcada por uma profunda consciência social, mais do que fotógrafo documental ou fotojornalista, revelou-se um profeta visual que, com um apuro estético incomum, usou a fotografia como instrumento de denúncia e sensibilização. Dos países devastados por guerras, genocídios e crises humanitárias às paisagens ainda intactas do planeta, as suas imagens a preto e branco – exemplarmente tipificadas por séries como Êxodos e Génesis – são autênticas parábolas contemporâneas: belas, brutais e profundamente humanas, constituem um apelo claro à urgência da compaixão por quem sofre e à assunção de responsabilidade face às crises sociais e ambientais do nosso tempo.

Em Gold, documentou a ‘febre do ouro’ na Serra Pelada, na Amazónia brasileira, onde, entre 1980 e 1986, chegaram a concentrar-se diariamente dezenas de milhares de trabalhadores (imagem). Se muitas das paisagens terrestres de Salgado evocam uma dimensão transcendental, por vezes com ecos quase bíblicos, as fotografias dos mineiros da Serra Pelada, num formigueiro humano, remetem para o trabalho escravo da Antiguidade – como na construção das pirâmides do Egito.

Em 1992, o governo brasileiro decretou o encerramento definitivo da exploração mineira daquela que foi a maior mina de ouro a céu aberto do mundo. Segundo dados oficiais, a região produziu 487 toneladas de ouro na década precedente, grande parte transacionada no mercado negro. O gigantesco buraco escavado ao longo dos anos acabaria por se encher de água, formando um lago com 200 metros de profundidade, contaminado por mercúrio. A presença deste metal pesado, altamente tóxico, deve-se à prática da amalgamação, um método rudimentar de purificação do ouro que consiste na adição de mercúrio líquido aos minérios auríferos, formando uma amálgama. Esta, ao ser aquecida, liberta o mercúrio para a atmosfera sob a forma de vapor, deixando o ouro em estado quase puro. Estima-se que, por cada quilograma de ouro extraído seja volatilizado cerca de 1,3 kg de mercúrio, contaminando o ar, a água e os seres vivos (é um elemento que se bioacumula ao longo das cadeias alimentares).

Este tipo de mineração, com raízes na Amazónia desde o século XVI, intensificou-se nas últimas décadas, impulsionado pela utilização de aviões ligeiros e pelos avanços nos sistemas de comunicação. A atividade é também comum noutros países da América do Sul (como o Peru, o Equador e o Paraguai), assim como na África (Senegal, Zimbabué, Camarões e Burkina Faso) e na Ásia (Filipinas e Indonésia) – frequentemente de forma ilegal e sem regulamentação. Trata-se de um dos modos de exploração mineral mais agressivos para o ambiente: ao contrário da mineração subterrânea, esta modalidade implica a remoção massiva da camada superficial do solo, com recurso a escavadoras, explosivos e grandes volumes de água. Os impactos incluem a desflorestação, a alteração dos ecossistemas fluviais e a modificação irreversível da morfologia do território. As áreas abandonadas após a exploração assemelham-se frequentemente a paisagens lunares. Para além da devastação ecológica, as consequências sociais podem ser enormes. Povos indígenas e comunidades tradicionais são muitas vezes deslocados ou veem os seus modos de vida ameaçados pela degradação ambiental, pelo colapso das economias locais e pelo aparecimento de doenças e conflitos.

No seu compromisso ambiental, Sebastião Salgado não se ficou pela fotografia. Com a sua mulher, Lélia Wanick Salgado, fundou em 1998 o Instituto Terra, dedicado à reflorestação de áreas degradadas da Mata Atlântica – um dos biomas mais biodiversos e ameaçados do planeta, estendendo-se ao longo do litoral brasileiro. Originalmente com 1,3 milhões de km², restam-lhe hoje menos de 12% da sua cobertura original, em fragmentos dispersos.

Em 2022, Jair Bolsonaro expressou publicamente o desejo de retomar a exploração de ouro na Serra Pelada, afirmando que bastaria «trazer a caneta BIC» para reduzir as restrições impostas. A realidade, no entanto, mostrou-se bem diferente: a Serra Pelada permanece encerrada, ensombrada pelo seu passado.