Controvérsia. Julgamentos mediáticos que acabaram em absolvições inesperadas

São vários os julgamentos que adquirem um mediatismo que os coloca no foco da opinião pública. Os de O. J. Simpson e George Zimmerman, e as suas consequentes absolvições, são exemplos paradigmáticos.

Existe um vasto leque de crimes que chocam o país. Vários deles foram abordados ao longo desta edição. Mas há crimes, e os seus consequentes julgamentos, que chocaram o mundo. Por uma ou por outra razão, tornaram-se mediáticos e foram seguidos em várias latitudes. Em vários deles, além do choque provocado pelo crime em si, o que mais chocou a opinião pública foram os julgamentos que acabaram em inesperadas absolvições. Relembremos dois deles.

O. J. Simpson e as luvas ensanguentadas

Quando este tema é abordado, o caso de O. J. Simpson, famoso jogador de futebol americano, é inevitável. O julgamento tornou-se viral um pouco por toda a parte, principalmente depois da perseguição policial na noite em que Simpson foi detido. De acordo com a página Famous Trials da Faculdade de Direito da Universidade do Missouri-Kansas City (UMKC), “noventa e cinco milhões de telespectadores testemunharam a lenta perseguição policial em direto”. Segundo a mesma fonte, o caso tornou-se tema de conversa entre os principais líderes mundiais, de Bill Clinton a Boris Yeltsin, passando por Margaret Thatcher: “Até líderes estrangeiros, como Margaret Thatcher e Boris Yeltsin, falavam avidamente do julgamento. Quando Yeltsin saiu do avião para se encontrar com o Presidente Clinton, a primeira pergunta que lhe fez foi: “Acha que foi o O. J.?”.

O caso remete-nos para as 22h do dia 12 de junho de 1994. As certezas quanto ao que realmente aconteceu ainda são poucas, mas, como refere a Faculdade de Direito da UMKC de forma resumida, “o mais provável é que um único homem (mas talvez o autor do crime e um amigo) tenha entrado pelas traseiras do condomínio de Nicole Brown Simpson [ex-mulher de Simpson], em Bundy Drive, na prestigiada zona de Brentwood, em Los Angeles. Numa área pequena, quase fechada, perto do portão da frente, o homem cortou brutalmente Nicole, quase separando o seu pescoço do corpo. De seguida, lutou e esfaqueou repetidamente – cerca de trinta vezes – Ronald Goldman”. Goldman tinha-se deslocado à propriedade de Nicole para lhe devolver uns óculos de sol que a mãe de Nicole deixara no restaurante Mezzaluna.

Simpson, que havia viajado para Chicago nessa mesma noite, pouco tempo após o crime, tornou-se no principal alvo da investigação. Não obstante a inutilidade da entrevista levada a cabo pela polícia, que nem chegou a servir de prova em tribunal, a “polícia acumulou provas suficientes que indicavam a culpa de Simpson nos assassínios, pelo que solicitou e obteve um mandado de captura. Nos termos de um acordo estabelecido com o advogado de Simpson, Robert Shapiro, Simpson devia entregar-se na esquadra da polícia até às 10:00 da manhã de 17 de junho”. E é depois deste mandado de captura, que Simpson desrespeitou, que o caso assume novos contornos mediáticos. A polícia dirigiu-se a casa do ex-jogador para o deter, mas apenas encontrou uma carta, que mais parecia de suicídio: “Não tenham pena de mim. Tive uma vida ótima, grandes amigos. Por favor, pensem no verdadeiro O. J. e não nesta pessoa perdida. Obrigado por tornarem a minha vida especial. Espero ter ajudado a vossa. Paz e amor, O. J”. “Por volta das 6:20, um automobilista de Orange County viu Simpson a conduzir o [Ford] Bronco branco do seu amigo A. C. Cowlings e avisou a polícia. Em breve, uma dúzia de carros da polícia, helicópteros de informação e alguns curiosos do público estavam a perseguir o Bronco. A perseguição em câmara lenta acabaria por terminar com a detenção de Simpson na sua própria entrada”, escreve ainda o professor Douglas O. Linder, responsável pela página da UMKC antes citada.

Dos acontecimentos que decorreram durante centenas de dias de julgamento, há um que importa destacar. Um agente da polícia de Los Angeles encontrou uma luva ensanguentada e Cristopher Darden fez O. J. Simpson calçá-las em tribunal. As luvas não serviram a Simpson, que disse: “Não servem. Está a ver? Não servem”. Foi um dos momentos-chave do julgamento, mesmo que posteriormente tenham sido apontadas algumas das razões pelas quais a luva não serviu. Após este episódio marcante, Johnnie Cochran, o principal advogado de defesa, disse: “Se não serve, têm de absolver” (“If it doesn’t fit, you must acquit”, em inglês).

E O. J. Simpson acabou mesmo por ser absolvido. “Nós, o júri da ação acima referida, consideramos o arguido, Orenthal James Simpson, inocente do crime de homicídio”, foi o veredicto do júri após três horas de deliberação. Foi também um caso em que o racismo esteve em cima da mesa.

A absolvição que deu origem ao BLM

E se o racismo foi um ingrediente no julgamento de O. J. Simpson, no caso do homicídio de Trayvon Martin foi o prato principal. A morte de Martin, alvejado mortalmente no peito por George Zimmerman em 2013, e a absolvição do homicida marcou um ponto de viragem nos Estados Unidos, representando o pontapé inicial no Black Lives Matter, movimento hoje mundialmente conhecido como uma bandeira do ativismo negro.

Em fevereiro de 2012, numa tarde escura e chuvosa em Sanford, no Estado da Flórida, o jovem de 17 anos Trayvon Martin andava sozinho na rua, algo que fez com que Zimmerman, o líder da vigilância do bairro – uma iniciativa comunitária que, de acordo com a EBSCO, é “destinada a reforçar o envolvimento dos cidadãos na prevenção e segurança da criminalidade” – levantasse suspeitas. Numa entrevista conduzida pela polícia após o sucedido, Zimmerman declarou, citado pela já mencionado professor Douglas O. Linder: “Nunca o vi no bairro. Conheço todos os moradores. Estava a chover e ele estava a andar calmamente, sem pressa, a olhar para todas as casas”. O líder da vigilância do bairro contactou a polícia, que só chegou depois do encontro entre os dois. “Estava a voltar para onde estava o meu carro e ele saltou dos arbustos e disse: “Qual é o teu problema, pá?”. E eu respondi: “Não tenho nenhum problema”, e ele disse: “Agora tens um problema”, e deu-me um murro no nariz”, disse Zimmerman, concluindo que começou a gritar por ajuda: “Não conseguia ver. Não conseguia respirar”. Declarou também que o jovem lhe agarrou a cabeça e “começou a bater com ela no passeio” e lhe disse “vais morrer esta noite”. Foi então que apanhou a pistola e alvejou Trayvon Martin no peito.

Mas a versão que Rachel Jantel, amiga de Martin que falava, no momento, por telefone com o jovem, contou é bastante diferente. Citada também por Linder, disse: “Ouvi o Trayvon dizer: “Porque é que me estás a seguir? Depois ouvi um homem, a respirar com dificuldade, dizer: ‘O que estás a fazer aqui?’” Ouviu então um estrondo, que supôs ser o auricular de Martin a cair no chão. Enquanto gritava “Trayvon, Trayvon”, ouviu “sons de relva molhada” e depois “ouvi mais ou menos” Trayvon dizer “Sai, sai” antes de o telefone se desligar”.

Independentemente de, como escreveu Linder, “a versão de Zimmerman dos acontecimentos [ser] largamente consistente com o depoimento da testemunha ocular Jonathan Good, um residente de uma das moradias perto do local da luta e o observador mais próximo do confronto, considerado pela polícia como a testemunha ocular mais fiável”, a questão da motivação racial num homicídio que poderia ter sido evitado levantou uma forte onda de apoio a Trayvon, sendo que o único resultado aceitável seria a condenação de Zimmerman. Foram várias as figuras de peso, incluindo o então presidente Barack Obama, que se pronunciaram, mas que, no final, viram os seus esforços frustrados pela absolvição. Foi após o veredicto que surgiu o hoje famoso movimento Black Lives Matter, como uma onda de indignação pela não condenação de Zimmerman, e que levou James Luguri, da Universidade de Yale, a assinar um artigo chamado “George Zimmerman: Um estudo de caso sobre raciocínio motivado”.

No artigo, Luguri escreve o seguinte: “George Zimmerman foi considerado inocente do assassínio de Trayvon Martin. Para muitos, incluindo eu próprio, este é um facto difícil de engolir. No entanto, tendo em conta o âmbito alargado das leis estaduais da Florida que regem a autodefesa, não devemos ficar surpreendidos com o veredicto”. “Porque é que tantas pessoas acham que Zimmerman é culpado? Porque querem responsabilizá-lo. Uma grande quantidade de investigação psicológica encontrou provas de que as pessoas se envolvem num fenómeno chamado “raciocínio motivado”. Em vez de olharem para um conjunto de provas e chegarem a uma conclusão baseada em factos, as pessoas têm muitas vezes uma conclusão a que querem chegar e alteram os factos para se adaptarem a esse objetivo. As pessoas “queriam” que Zimmerman fosse culpado e, por isso, adaptaram os factos do caso a essa conclusão”, acrescentou.

Estes foram apenas dois casos altamente mediáticos que marcaram a Justiça americana, onde a condenação parecia, à primeira vista, o mais provável, mas que, no final de contas, o júri decidiu, para choque de muitos, pela absolvição.