Autos de fé

O Hamas expõe, sacrifica e mantém o seu próprio povo, que diz defender,no subdesenvolvimento, na mais sórdida miséria e dependência

O que não cessa de me impressionar profundamente na questão do Hamas e da Palestina, em que tudo – a realidade, a informação e a desinformação – é tão claro, é que mesmo – e sobretudo – em sociedades ditas e tidas por civilizadas, tanta gente, de um indiferenciado espetro político e cultural, não se demarque da defesa ou simpatia por um bando terrorista tão abjeto, como o Hamas. Terrorista abjeto desde logo para o próprio povo que diz defender, mas que na realidade, deliberada e cruelmente, expõe e sacrifica e mantém há tantos anos no subdesenvolvimento, na mais sórdida miséria e dependência.

Embora possa ser explicado por cegueira ideológica, por fanatismo e oportunismo político sectários, essa explicação não é suficiente. As razões remetem para algo mais fundo, geralmente recalcado, mas nunca vencido, a roçar o inumano, que subsiste na mente e no coração dos homens. Um ódio, que atravessa séculos e gerações, que resulta de um ressentimento, de uma inveja, um impulso de autodestruição que se projeta no ‘outro’, cuja existência afronta os nossos complexos de inferioridade mais cegos e incontroláveis, que separam o melhor do mais horrível de que os seres humanos podem ser capazes. Situa-se aí, nessas profundezas inconscientes, o ódio endémico ao judeu, esse ‘outro’, tornado bode expiatório de todas as mais inconfessáveis frustrações. Judeus, que por características histórico-culturais não caíram na vitimização e pelo contrário se tornaram, por instinto de sobrevivência, na comunidade que se foi tornando sempre mais hábil e resiliente, contribuindo, aliás, singularmente, para as mais elevadas realizações, nos domínios do conhecimento, da arte e do engenho humanos.

Alexandre Stanhope, embaixador inglês em Madrid, foi convidado para assistir em Palma de Maiorca, na Primavera de 1691, a uma ‘fiesta’ espanhola então corrente. Acompanhado pelo filho, que o visitara, assistiram perplexos a um ‘auto de fé’: Quarenta e sete judeus queimados na fogueira. Os homens mais ricos da ilha, proprietários das melhores casas da cidade, a quem os espanhóis atribuíram as razões do declínio do país. «Porque obscuras razões religiosas esta gente mata alegremente a sua elite económica, a quem imputam as razões do seu declínio?», escreveu numa carta para Londres o filho do embaixador.

 Lembro-me de ter ouvido José Mariano Gago referir que o odor dos corpos a arderem nas fogueiras no centro de Lisboa chegava a Campo de Ourique.