Na noite das eleições regionais na Madeira, a 24 de setembro de 2023, Luís Montenegro decidiu clarificar a sua posição quanto à relação futura com o partido de André Ventura: «Nós não vamos governar nem a Madeira, nem no país com o apoio do Chega, porque não precisamos». Dias depois, quando lhe pediram para clarificar o que aconteceria se precisasse do apoio do partido de direita populista, proferiu a expressão que desde então se popularizou: «É muito simples, não é não». E ainda acrescentou: «Eu nunca farei um acordo político de governação com o Chega».
Para bom entendedor, ficou claro o que queria dizer: estavam excluídas coligações pré ou pós eleitorais com o Chega, bem como acordos gerais que tornassem um Governo da AD dependente do apoio de André Ventura. Uma promessa reforçada – e validada pelos eleitores – nas legislativas de 2024 e 2025.
Apesar de nunca ter quebrado esse compromisso, a verdade é que a discussão sobre se o «não é não» se mantém ou não parece ter ocupado uma boa parte do debate político, com a esquerda a querer atirar a AD para os braços do Chega em todas as oportunidades. No final de maio, Mariana Mortágua já declarava que «o «não é não» caiu e Montenegro está pronto para fazer alianças com quem se apresentar, incluindo com a extrema-direita». O tema voltou a surgir em força no último mês depois de a AD e o Chega aprovarem a lei da imigração e a criação da Unidade de Estrangeiros na PSP. O porta-voz do livre, Rui Tavares, afirmou recentemente, sem se rir, que ouvir Hugo Soares «dizer que o ‘não é não’ não acabou» é «algo que dá vontade de rir a todos os portugueses».
Mas se vindo de Mariana Mortágua e Rui Tavares a tentativa de colagem da AD ao Chega não é propriamente uma surpresa – nem tem grande importância – o caso torna-se diferente quando se trata do secretário-geral do Partido Socialista. Num artigo de opinião publicado no Público no passado domingo, José Luís Carneiro deixou claro o que pensa: «O ‘não é não’ – tão repetido na campanha eleitoral – passou à História. A primeira marca deste Governo foi dar à extrema-direita uma inimaginável vitória política e cultural».
Pegando no texto de Carneiro, foram elaboradas reportagens televisivas e escritos artigos de jornais ignorando o sentido original da frase de Luís Montenegro, semeando nos portugueses a ideia de que a promessa foi realmente quebrada. No fundo, é o executar de uma das regras da propaganda: «se uma mentira for repetida muitas vezes ela torna-se verdade» (por curiosidade, uma frase normalmente atribuída a Joseph Goebbels, o ministro da propaganda nazi).
Como é óbvio, uma mentira não se torna verdade só porque é repetida um sem número de vezes. Mas torna-se uma «ilusão da verdade», uma convicção para um número de pessoas que estão predispostas a acreditar em algo que vão assumir como um facto, porque não o vão confirmar nem verificar o contexto. Porque é fácil propagar mentiras. Por norma elas são simples, diretas e fáceis de compreender. No caso concreto resume-se a um «ele tinha dito ‘não é não’ e agora fez um acordo». É uma mensagem fácil de passar e talvez difícil de desmentir porque o contexto ficou lá atrás, no dia em que Montenegro proferiu a frase completa.
Mesmo com divisões no interior do Governo sobre o caminho a seguir, para já não parece haver indícios de que o primeiro-ministro pretenda quebrar a promessa.
Fazer previsões é sempre um exercício arriscado. Podemos traçar cenários, fazer cálculos mais ou menos realistas, ponderar variáveis e antecipar caminhos. Mas assumir antecipadamente um resultado eleitoral vai contra todas as regras de bom senso. O que a história nos ensina é que há sempre fatores imponderáveis que mudam a linha que o destino parecia traçar. E não nos faltam exemplos recentes. Em 2015 a direita preparava-se para formar um novo Governo quando António Costa criou do nada a geringonça para a apear do poder. Em 2022 Costa ganhou, contra todas as expectativas, uma maioria absoluta que deveria estar ainda no poder e durar até 2026. Em vez disso, demitiu-se em novembro de 2023 e desde então tivemos duas eleições. Ou seja, nada pode ser dado como certo. Ou inevitável.
Vem isto a propósito dos muitos que, nos últimos meses, têm dado como adquirida uma vitória de Henrique Gouveia e Melo nas eleições presidenciais de 2026. Quase que parecia que em vez de uma eleição teríamos uma entronização. A chegada ao Palácio de Belém de um homem providencial. Ora, o que as sondagens mais recentes mostram, incluindo aquela que publicamos nesta edição, é que essa vitória está longe de garantida. Sem farda, obrigado a falar mais em público – o que, diga-se, não é o seu forte –, rodeado de políticos, pejado de contradições e com adversários experientes, Gouveia e Melo terá de melhorar muito se quiser manter a possibilidade de chegar ao Palácio de Belém. Terá, sobretudo, de resistir ao tempo. E seis meses, em política, é muito tempo.