O governo português decidiu avançar para o reconhecimento do Estado da Palestina, depois de em junho ter dito que só o faria mediante um conjunto de condições que, obviamente, não estão cumpridas: “a libertação segura dos reféns”; “reformas internas por parte da Autoridade Palestiniana”, “a desmilitarização do Estado”, “o desarmamento do Hamas” e “o reconhecimento do Estado de Israel por parte da Autoridade Palestiniana”.
Trata-se de uma cambalhota difícil de entender, uma vez que nenhuma das condições está, objectivamente, cumprida. É, muito provavelmente, uma cedência à pressão mediática, apesar de o Primeiro-Ministro ter dito no mês passado que não ia “fazer números para aparecer nas notícias”, e uma claudicação a pressões externas, não obstante o Ministro dos Negócios Estrangeiros ter afirmado há poucos dias que “Portugal é um país soberano”.
É acima de tudo um erro grave que não pode deixar de ter a nossa firme oposição.
É um absurdo diplomático. Se quiser ser coerente com a “nobreza” da decisão tomada, o governo português tem de esclarecer se, após o reconhecimento oficial, abrirá representação diplomática e consular na Palestina, em que parte do território, e se obviamente transferirá para lá o seu corpo diplomático. Ou se a diplomacia portuguesa para a Palestina continuará a ser exercida… em Israel?
É um disparate jurídico e político. Onde estão preenchidos os critérios consagrados na Convenção de Montevideu de 1933 para o reconhecimento de um Estado? População permanente, território definido, governo efectivo e capacidade para manter relações internacionais? Que Estado é, afinal, a Palestina?
Que entidade é esta cuja população vive fragmentada entre enclaves desconexos, sob diferentes formas de controlo, sem sistema político funcional nem autoridade unificada capaz de exercer soberania plena sobre um território de fronteiras indeterminadas?
Gaza é governada por uma organização terrorista, em guerra declarada com a Autoridade Palestiniana, sediada na Cisjordânia, que, por sua vez, não realiza eleições desde 2005, e que, se realizasse, as perderia justamente para o Hamas, que a própria União Europeia designa, oficialmente, de organização terrorista.
Que Estado é este, afinal, que não sabe onde começa, nem quem o representa, nem a quem responde — fragmentado entre os que acusam os judeus de perpetrar um novo Holocausto e os que negam que tenha existido algum? Reconhecer a Palestina como Estado, nestas condições, é abdicar do próprio conceito de Estado.
É um serio risco de segurança. O reconhecimento ocorre como resposta ao pogrom de 7 de Outubro de 2023, no qual civis judeus (bebés, mulheres, idosos) foram violados, queimados vivos, executados. Muitos continuam reféns nos túneis do Hamas. Reconhecer um Estado nestas circunstâncias é converter a barbárie em critério de soberania, como se a chacina de judeus fosse agora o novo requisito para satisfazer Montevideu. Estamos a recompensar o terrorismo, a encorajar a sua replicação e a elevá-lo à condição de fundação política.
É um choque com a História. O futuro do Médio Oriente não passa pelas trevas do Hamas e do atual Irão. Passa pela luz da nova Ordem Regional dos Acordos de Abraão, que normalizou as relações entre Israel e vários estados muçulmanos e trouxe a perspectiva de uma segunda metade do século XXI próspera e digna numa região martirizada por forças paradas no século VII.
A Solução de “Dois Estados” é o único caminho possível para uma paz duradoura no conflito israelo-palestiniano e a única forma de os dois povos viverem a vida digna e decente que ambos merecem. Como disse Simon Schama no final da magnífica série da BBC A História dos Judeus (inspirada no seu livro com o mesmo nome), “A Bíblia está cheia de encontros entre Homens e Deus, entre Homens e Homens e entre Irmãos Desavindos”. Está na hora destes irmãos desavindos se reencontrarem.
Mas esta solução, que implica a prazo o reconhecimento do Estado da Palestina – em rigor o reconhecimento mútuo – tem de estar subordinada a condições prévias, inegociáveis.
A “Solução de Dois Estados” deve fazer parte do processo negocial de paz, envolvendo as duas partes, e nunca ser um diktat externo. Ela pode ser, de resto, um dos mais poderosos incentivos ao espírito negocial e de boa vontade entre as partes interessadas em viver em paz e segurança.
É fundamental que o reconhecimento do Estado da Palestina seja feito no quadro de uma posição consensual europeia. A pior coisa que pode acontecer à União Europeia é aparecer uma vez mais toda dividida na sua política externa.
É uma irresponsabilidade pensar num reconhecimento parte de Portugal no quadro de uma coligação que divide, impulsionada por motivos de política interna de outros Estados, seja a França, seja a Espanha.
O reconhecimento do Estado da Palestina tem também de ser articulado com os principais aliados de Portugal e da União Europeia, sendo para nós especialmente importante considerar as posições dos nossos aliados e amigos atlânticos, muito em particular os EUA.
Tal como disse inicialmente o governo português, o reconhecimento tem também de depender da eliminação do Hamas, da libertação de todos os reféns, de uma reforma profunda da autoridade palestiniana e do reconhecimento de Israel por todos os grupos palestinianos. A isto é preciso acrescentar a realização de eleições livres e justas na Cisjordânia e na Faixa de Gaza.
Pagaremos caro esta precipitação e esta dupla cedência à pressão mediática e à barbárie. Quando as civilizações perdem a firmeza das suas convicções morais, apenas os protagonistas fracos podem liderá-las e satisfazer a irrelevância a que estão condenadas.
Eurodeputado e Professor Universitário