A minha bela lavandaria

Os empregados de lavandaria devem estar a extinguir-se, deve ser das alterações climáticas, que já reduziram a espécies raras os canalizadores, os eletricistas, os calceteiros, os bate-chapas…

Este texto, apesar do título, não é sobre o filme de Stephen Frears. Também não é sobre o crime de branqueamento (vulgo ‘lavagem’). Mas é um texto que, apesar de ser centrado na senhora dona Natália (aportugueso o nome), tem um ponto de contacto com a Justiça. Qual? A minha toga de advogado. E porquê? Porque há uns dias, quando ainda as férias judiciais não estavam aí, eu achei que o calor e a suadeira dos julgamentos aconselhavam a que a dita toga visse limpeza. Fui de manhã cedo num pulo à lavandaria do costume, onde pontua a senhora dona Natália, que é a encarregada, uma senhora que, pelo toque que dá às vogais e às consoantes do português, suponho que seja de um país da Europa de leste; deve ter vindo já há uns anos largos, quando, depois da fobia um nadinha histérica quanto aos brasileiros, se dizia por aí que ‘os de leste iam tomar conta disto’. Dei os bons dias e disse que precisava, se faz favor, da toga limpa, e ela com certeza e chegou-se ao balcão e à máquina registadora, onde começou a teclar sem aquele vagar e aquele cuidado que hoje em dia senhoras mais novas, com grandes unhas de gel, põem nos gestos quando tocam com a polpa do dedo na máquina, protegendo a todo o custo a unha bem torneada. Estava ela nisto e eu, quase suplicante, acrescentei que precisava do serviço expresso, o mais caro, para esse dia, porque tinha de envergar a toga no dia seguinte. Ela parou, fitou-me séria e disse que isso é que não, já não faziam. Não faziam, como assim? Isto disse eu, entre espantado e receoso. Pois não, não faziam, sentenciou ela, porque não havia pessoal. E eu, feito parvo, insisti, ao que ela retorquiu, com todas as letras, que não tinham pessoal suficiente e, definitiva, apontou para a placa onde se lia ‘precisa-se de funcionária / o’. Desisti, fui à da esquina, o mesmo. Não há pessoal.

Não há pessoal?! Então, mas não estamos a transbordar de gente que vem de todo o lado, e que fica com os empregos todos, além de gerar insegurança, roubar, violar, entupir os hospitais, virar os serviços públicos do avesso e, ainda por cima, alterar (para pior, claro) a cultura e a língua portuguesas, ao ponto de ser preciso pôr nesta pouca-vergonha um torniquete e um cordão sanitário? Que diabo, fiquei a cismar, e logo me ocorreu que os empregados de lavandaria devem estar a extinguir-se, deve ser das alterações climáticas, que já reduziram a espécies raras os canalizadores, os eletricistas, os calceteiros, os bate-chapas, os carpinteiros, os pedreiros, os ladrilhadores, os cuidadores de idosos e doentes, os agricultores, os pintores, entre outros. O que vale são as novas medidas de incentivo à imigração de pessoas altamente qualificadas, coisa que muito me alegra, não só porque vão suprir as faltas que por aí há de pessoal, mas também porque já me estou a imaginar na lavandaria a trocar impressões com um engenheiro aeroespacial, ou a dar de caras quando saio à rua com um calceteiro que, entre duas marteladas na pedra, e do alto do seu pós doutoramento em Estudos Clássicos, me brinda com uma ode de Horácio, ou, quando idoso, a ser cuidado por alguém que me anime os dias e me distraia das maleitas discorrendo sobre as mais modernas tendências da Sociologia ou sobre Álgebra Avançada. E isto para já não falar na felicidade que aí vem quando deixar de ser mais difícil encontrar quem saiba remendar um cano do que um cirurgião cardiovascular, com o brinde de que o canalizador saberá entreter-me e ilustrar-me com ensinamentos de Antropologia, Engenharia ou Medicina. E até vou já ver se não preciso de que me ladrilhem alguma coisa aqui em casa, só para ver se me calha alguém especializado em Kant ou Hegel, e já agora Mecânica Quântica também vinha a calhar. Não se apoquente, senhora dona Natália, isto está quase resolvido, vai ver. Vão vir charters deles e delas, vai ver as filas de diplomados a responder ao seu aflito ‘precisa-se de funcionário / a’. Até vai enjoar. 

Advogado