O Matuto vai contar um segredo.
Aqui, no Brasil, país que tão generosamente acolheu o Matuto no seu seio, mesa de cabeceira é “criado mudo”. Isso mesmo: criado mudo! Os ingleses dizem de forma inócua bedside table; os franceses têm a table de chevet; os espanhóis ficam-se pelo óbvio mesita de noche e os italianos pelo castiço comodino. Os brasileiros inventaram o colorido “criado mudo”.
As origens do termo são controversas, e se quem lê as aventuras do Matuto afina pelo diapasão do politicamente correcto, então é melhor desembarcar desta crónica. (Pode educar-se vendo o desempenho formidável da American Eagle depois da Sydney Sweeney vestir tão bem as suas jeans.) Dizem as más línguas que a expressão “criado mudo” vem dos tempos coloniais, onde um escravo ficava de serviço nocturno ao lado da cama dos seus amos. A função desse criado seria dar a vela, um copo de água, o urinol (vulgo penico), conforme a necessidade do momento. Ora, todos esses utensílios passaram a guardar-se na mesinha do lado da cama — e essa mesinha passou a ser o “criado mudo”.
No entanto, o Matuto sabe de fonte segura que esta versão é uma conspiração da esquerda bacoca. Na verdade, o termo “criado mudo” é uma tradução literal do inglês dumbwaiter, e teria a ver com o hábito dos britânicos de, à época da sua hegemonia mundial, usarem móveis em elevadores para subir e descer comida, talheres, castiçais, terrinas de sopa, travessas de carne ou peixe, da cozinha até à sala de jantar.¹ (Veja-se a descrição da pesca do peixe cozido entalado no poço do elevador de Jacinto, no livro A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós.) Consultando um Dicionário de Português de 1890, o Matuto descobriu que houve um tempo em que a mesinha de cabeceira era denominada “donzela”. Que elegância — considera o Matuto.
E foi pensando na relação entre elevadores de carga, “dumbwaiter”, e “criados mudos” que o Matuto teve um sobressalto. Num momento trágico de suas vidas, o Matuto e Dona Sirlei tiveram de mudar de apartamento no mesmo prédio. O Senhor Elevador foi accionado diversas vezes para carregar os mais insólitos objectos domiciliares. Um belo dia, o Matuto e Dona Sirlei transportavam uma mesa de cabeceira. O “criado mudo” do Matuto. Na viagem até ao quarto andar, foram inesperadamente acompanhados pelo casal que morava no segundo esquerdo. Acontece que o “criado mudo” do Matuto tem uma gavetinha teimosa. Quando está no quarto, emperra; mas quando à solta no prédio, ganha asas. Não deu outra! Foi o casal do segundo esquerdo entrar no elevador — e a gaveta da mesinha a voar.
O Matuto ainda tentou uma guinada à bailarino para evitar a catástrofe. Em vão. A gavetinha danada abriu-se e esparramou todo o conteúdo pelo chão. Três pares de olhos olharam muito curiosos para a tranqueira espalhada no elevador. Um par de olhos — os do Matuto, naturalmente — miravam em pânico. Há certas coisas, tipo “passa a outro e não mesmo”, que só têm um destino na vida: aquela gavetinha da mesa de cabeceira.
É um facto! Agora tudo isso estava sujeito aos olhares indiscretos do casal do segundo esquerdo. E o Matuto desconfia que até Dona Sirlei lançou uma olhadela de surpresa divertida. Havia ali material que não via a luz do dia há cinco anos. Agora estava debaixo do escrutínio público. O Matuto ruborizou. Moedinhas de um Euro rodopiavam fazendo aquele barulhinho: triiiinnnn-ruuuumm. Cuecas do Batman… cadeados ferrugentos… comprimidos para a tosse, para as dores de dentes, para as costas, para a diarreia, para a sinusite… (sorrisos cúmplices da malta do segundo esquerdo — quem não tem comprimidos nas gavetinhas!?). Duas pilhas Duracell rolaram até aos pés do casal… (será que ainda funcionam ou já são arqueologia doméstica?). Uma foto antiga do Matuto com o cabelo torto… (que constrangimento!). Um carrinho miniatura sem uma roda… uma caneta Bic (com tinta seca, de certeza)… um lápis sem ponta… uma tomada… um CD de jazz… um post-it com um número de telefone (de quem seria? Dona Sirlei não gostou: isto cheira a esturro!)… umas chaves sebentas…
O Matuto apanhou tudo e devolveu tudo à gaveta do “criado mudo”, que naquele dia tinha falado mais do que devia. Não fez jus ao nome — irritou-se o Matuto. Desde esse dia, o “criado” do Matuto nunca mais viajou de elevador sem supervisão… e o Matuto anda a consultar um terapeuta especializado em transtornos de compartimentos íntimos.
- in, Encliclopédia Britânica, Edição de 1910.