Volto ao tema da independência do Banco de Portugal a propósito da substituição de Mário Centeno por Álvaro Santos Pereira e das muitas confusões que ela gerou.
1. Independência do BCE (e dos bancos do sistema europeu de bancos centrais) refere-se à sua independência na condução da política monetária com o objetivo (único!) de assegurar a de estabilidade do nível de preços. Mesmo um governador ‘dependente’ terá pouco poder (1 em 20 votos) para influenciar essa política. Também supervisão dos bancos nacionais sistémicos escapa a esse governador ‘dependente’.
2. Independência de quem? Independência relativamente aos governos nacionais e cujo pilar é a proibição de financiar dos défices públicos diretamente e de receber instruções dos Tesouros nacionais sobre a fixação das taxas de juro.
3. Celebremente, Thomas Sargent e Neil Wallace, estudando nos anos 1980 o fim de quatro hiperinflações históricas, modelizaram o braço-de-ferro entre governos e bancos centrais como um jogo de ‘líder-seguidor’ (ou de Stakelberg), e consideraram que a independência é um regime que garante a liderança do banco central sobre o nível de seigniorage da criação monetária que é entregue ao Tesouro. O regime oposto seria o da liderança do Tesouro sobre a ‘impressão de moeda’ ou as taxas de juro. As tensões entre Powell e Trump ilustram bem esta tensão sobre quem é líder e seguidor.
4. Para a independência contam muito mais das ‘regras do jogo’ (as leis, normas e tradições que definem a ‘constituição’ do BCE) do que do perfil deste ou daquele governador nacional. Não é a suposta independência do governador que faz a independência do Banco; é precisamente o inverso. A FED pode fazer face a Trump porque o Powell não pode ser despedido.
5. Tal não significa que o comportamento do governador não seja importante para projetar uma imagem de independência da instituição que representa. Contudo,
a. Independência não significa que o governador, enquanto tal, tenha plena liberdade e, muito menos, possa ser percebido como oposição ao governo;
b. Em particular, ser independente não significa poder/dever emitir opinião sobre qualquer aspeto vida económica nacional – da política orçamental à imigração, passando pelas leis laborais – estejam eles dentro ou fora do escopo do mandato do BCE;
c. A melhor maneira de projetar uma imagem de independência é adotar uma postura modesta e ter pronunciamentos estritamente nos limites do mandato do Banco Central, ou seja, o controlo da inflação e a estabilidade do sistema financeiro;
d. Por exemplo, quando um governador critica o que considera ser o laxismo orçamental deve fazê-lo apenas se tiver convencido que tal compromete os objetivos de inflação do Euro ou a estabilidade do sistema financeiro nacional.
6. Ser independente não significa não ter passado político. Contudo, não são equivalentes as situações em que um governador tenha sido ministro da Economia e do Trabalho há 12 anos ou tenha transitado diretamente da Finanças. Por um lado, 12 anos são um longo período de nojo. Por outro, e fundamentalmente, as relações entre Finanças e Banco Central são, como vimos acima, a pedra de toque da independência. Ao longo do seu mandato como governador foi inescapável a sensação de que Mário Centeno não cedeu à tentação de afirmar o seu legado como ministro das Finanças, eventualmente tendo em vista outros voos políticos futuros. Por isto, não foi exemplar em projetar uma imagem de independência.
Professor universitário