Godzilla, o monstro que nasceu do medo atómico

A 6 de agosto de 1945, um médico suíço assistiu ao sofrimento atroz da vítimas da bomba atómica, que atirou elétricos pelo ar e fez descarrilar comboios como se fossem brinquedos. Nove anos depois da tragédia, o trauma de Hiroxima ganhava a forma de um monstro que soprava fogo radioativo.

O Japão estava habituado a violentos terramotos, tsunamis e incêndios. No clássico Hojoki – Reflexões da minha cabana, o poeta Kamo no Chomei descreveu o incêndio que devastou Quioto em 1177, o grande tornado, a fome, o terramoto de 1185 (que derrubou casas, cidades e até montanhas), a guerra civil entre clãs rivais. Foram tempos terríveis.

Ainda assim, o que sucedeu no dia 6 de agosto de 1945 foi muito diferente de tudo aquilo a que o mundo já tinha assistido. Nove minutos depois das sete da manhã, as sirenes soaram em Hiroxima e quatro aviões americanos surgiram no céu sem nuvens, mas às 7h31 foi dado o sinal de que o perigo tinha passado. Os habitantes retomaram as respetivas atividades naquela grande cidade industrial e portuária. A acalmia durou um pouco mais de uma hora.

«De repente, uma luz rosa-esbranquiçada e ofuscante surgiu no céu, acompanhada por um tremor anormal, seguido quase imediatamente por uma onda de calor sufocante e um vento que varreu tudo no seu caminho», relatou o médico suíço Marcel Junod. «Em poucos segundos, milhares de pessoas nas ruas e nos jardins do centro da cidade foram queimadas por uma onda de calor escaldante. Muitas morreram instantaneamente, outras ficaram a contorcer-se no chão, gritando em agonia por causa da dor intolerável das queimaduras. Tudo o que estava em pé no caminho da explosão – muros, casas, fábricas e outros edifícios – foi deitado por terra e os destroços rodopiavam num redemoinho. Elétricos foram lançados no ar e dançavam de um lado para outro como se não tivessem peso nem solidez. Comboios foram atirados para fora dos carris como se fossem brinquedos. Cavalos, cães e gado sofreram o mesmo destino que os seres humanos. Todos os seres vivos ficaram petrificados numa atitude de sofrimento indescritível».

Cerca de meia hora depois da explosão, uma chuva fina e escura, misturada com poeira, fuligem e partículas radioativas, começou a cair sobre a cidade. Espalhou-se o boato de que os americanos estavam a regar Hiroxima com gasolina, para depois lhe pegar fogo e acabar de vez com o que restava.

‘Lá vai ela!’
Outra testemunha, o jornalista de ciência William L. Laurence, teve uma perspetiva bem diferente dos acontecimentos. Primeiro, presenciou o ensaio da bomba em Alamogordo, Novo México. «A sua conceção envolveu milhões de horas de trabalho do que é sem dúvida o mais concentrado esforço intelectual da história», registou. Depois assistiu «à montagem deste meteoro feito pelo homem» e ao momento solene em que foi carregado a bordo do Enola Gay, um bombardeiro B-29 Superfortress. Por fim, Laurence estava num dos três aviões que participaram na missão que lançou a bomba sobre Hiroxima.

«Ouvimos no rádio o sinal combinado, colocámos os óculos de soldador e observámos atentamente as manobras da aeronave a cerca de oitocentos metros à nossa frente.

  • Lá vai ela!, disse alguém.
    Da barriga do The Great Artiste [Enola Gay], caiu o que parecia um objeto negro.
    O Capitão Bock guinou para escapar ao seu alcance; […] apesar de estarmos em plena luz do dia na cabine, todos percebemos um clarão gigante que atravessou os óculos de soldador e inundou a cabine com uma luz intensa.
    Tirámos os óculos após o primeiro clarão, mas a luz permanecia viva, uma luz verde-azulada que iluminava o céu a toda a volta. Uma tremenda onda de choque atingiu a fuselagem e fez tremer o avião da proa à cauda. Seguiram-se mais quatro explosões em rápida sucessão, cada uma ressoando como o estrondo de tiros de canhão que atingiam o nosso avião vindos de todas as direções. Observadores na cauda da aeronave viram uma bola de fogo gigante subir como se saísse das entranhas da Terra, expelindo enormes anéis de fumo branco. Em seguida, viram uma coluna gigante de fogo roxo, a 3.000 metros de altura, disparando em direção ao céu com enorme velocidade. Quando a aeronave fez outra curva na direção da explosão atómica, a coluna de fogo roxo atingiu o nível da nossa altitude. Tinham passado apenas uns 45 segundos. Atónitos, vimos a coluna disparar para cima como um meteoro vindo da Terra em vez do espaço sideral, tornando-se cada vez mais viva à medida que subia em direção ao céu através das nuvens brancas. Já não era fumo, nem poeira, nem mesmo uma nuvem de fogo. Era um ser vivo, uma nova espécie de ser, nascido diante dos nossos olhos incrédulos».

Castigo justo?
Merecia a população de Hiroxima esta maldição que se abateu sobre ela? A discussão continua em aberto. «Quando temos de lidar com uma fera, temos de a tratar como uma fera», resumiu lapidarmente o Presidente americano Harry Truman.

O exército japonês era conhecido pela sua resistência e crueldade. Render-se não era uma opção. E tinha nas suas fileiras notórios criminosos de guerra. Como o soldado Uno Shintaro, «um mestre confesso da arte da decapitação», que se gabava dos seus dotes para matar e torturar. «Ele – e alguns dos seus superiores – consideravam que este era um aspeto importante na formação das tropas», escreveu o historiador Kenneth Henshall.

«Sou responsável por tentar matar o máximo de japoneses possível com o mínimo de perdas do nosso lado», afirmou Lord Mountbatten, o último vice-rei da Índia britânica e comandante supremo aliado no Sudeste Asiático durante a II Guerra Mundial. «A guerra é uma loucura. […] Mas eu seria ainda mais louco se tivéssemos mais baixas do nosso lado para poupar os japoneses».

Na Declaração de Potsdam, de 17 de julho, Truman exigira que o Japão se rendesse incondicionalmente. Caso contrário, enfrentaria uma «destruição rápida e total». Com a recusa japonesa, os acontecimentos precipitaram-se. Primeiro a bomba de urânio em Hiroxima, a 6 de agosto. Três dias depois, a 9 de agosto, caía a bomba de plutónio em Nagasáqui. A primeira provocou no imediato 90.000 mortos, e talvez outros tantos nos anos seguintes. A segunda fez 50.000 mortos e talvez outros 30.000 a prazo. «Se […] o número de vítimas foi aí bem menor que em Hiroxima, foi porque a cidade era, como também Macau, construída à maneira Mediterrânica, virada para o mar e adossada às colinas, que em parte a protegeram do queimor imenso», explica o historiador Luís Filipe Thomaz em Nambanjin – Os Portugueses no Japão. Abrigada pelas colinas, Nagasáqui resistiu melhor aos efeitos da bomba.

Naturalmente, o grosso das vítimas não eram os criminosos de guerra nem sequer os soldados que preferiam a morte à desonra, mas civis e, entre estes, mulheres, velhos e crianças.

Foram eles que, no dia 15 de agosto, colados aos rádios, ficavam comovidos ao ouvir pela primeira vez nas suas vidas a voz do imperador Hirohito, que anunciava a rendição do Japão e o fim da guerra.

‘O mundo estava a chegar ao fim’
Voltemos às palavras do jornalista William L. Laurence, quando descreve a coluna de fogo provocada pela detonação: «Era um ser vivo, uma nova espécie de ser, nascida diante dos nossos olhos incrédulos».
Esse monstro ganharia forma nove anos depois no filme de 1954 Gojira – uma combinação das palavras japonesas para gorila (gorira) e baleia (kujira). O gigantesco réptil, da altura de um arranha-céus, espalhava a destruição e o pânico à sua passagem. Além da força e da fúria, possuía uma outra particularidade que o tornava particularmente temível: o sopro radiativo. Tal como a bomba.

As palavras do realizador Ishiro Honda, um antigo soldado e discípulo de Akira Kurosawa que tinha sobrevivido ao bombardeamento de Tóquio e testemunhara a devastação de Hiroxima, são reveladoras: «Havia a sensação de que o mundo já estava a chegar ao fim. Desde então, senti que esse medo atómico nos assombraria para sempre».