O Matuto e o João sem Braço

O Matuto ficou ciente de que a expressão “dar uma de João sem braço” estaria na mira do politicamente correto, por ser considerada capacitista — uma discriminação velada às pessoas com deficiência. O Matuto sabe das coisas e pensa que a ideia não tem eira nem beira.

Vez por outra o Matuto fica assarapantado. Neste país tropical que tão generosamente recebeu o Matuto no seu seio, cada dobra do caminho serve um espanto fresquinho. Uma das coisas mais curiosas, por aqui, são as expressões populares que saltitam de boca em boca. Cada um entra nesse linguajar por sua conta e risco. Os conterrâneos do Matuto ficariam de cara à banda ao ouvir ditos da roça, como, “quebrar o galho”; “ficar de bobeira”; “pagar mico”; “pagar o pato”; “pagar pau”; “dar um rolé”; “deu zebra”; “estar na pindaíba”; “pisar na bola”; “enfiar o pé na jaca”… Adiante! Uma expressão que o Matuto acha muito intrigante é: “dar uma de João sem Braço”.

O Matuto sabe de fonte segura que antigamente, os pedintes amarravam um braço sob a roupa, fingindo mutilação de guerra para obter esmola. O embuste tornou-se sinónimo de quem foge às responsabilidades ou se faz de desentendido, e a expressão passou também a designar pessoas preguiçosas, dissimuladas, esconsas, esquivas, embuçadas… No tempo em que o Matuto estava na activa, dizia-se “dar uma de desentendido”. O Matutinho dizia muitas vezes à Vó Guida, com o ar ausente, de quem não está nem aí para a coisa: “que saudades duma torta de cenoura, bem molhadinha”. Era certinho como os figos a caírem de maduros que na próxima visita a Vó Guida vinha acompanhada duma saborosíssima torta de cenoura. Estaladiça e molhadinha. “Dar uma de desentendido” tinha as suas recompensas.

Entretanto, o Matuto ficou ciente de que a expressão “dar uma de João sem braço” estaria na mira do politicamente correto, por ser considerada capacitista — uma discriminação velada às pessoas com deficiência. O Matuto sabe das coisas e pensa que a ideia não tem eira nem beira. Essa frase popular é tão natural na cultura brasileira quanto o hábito de comer esparguete com molho de tomate no almoço de domingo, ou aceitar que as pizzarias só abrem para o jantar. Quem quiser pizza ao almoço que a compre no dia anterior e reaqueça no micro-ondas.

O Matuto lembra que em tempos de recrudescimento do ódio ao Judeu, o dito popular “judiar” deveria ser acautelado. Dona Sirlei, a gentil esposa do Matuto, vira e mexe diz: “ah, não judia dele”. Dona Sirlei é uma boa alma, e não tem intenções racistas, todavia, é certo e sabido que palavras como ‘judiar’, judiação’ e ‘judiaria’, surgem grávidas dum ressaibo antissemita. “Que Chinesice”; “é só para Inglês ver”; “neutralidade Suiça”; “eficácia Germânica”; “jeitinho Brasileiro”; “coisa de Argentino”; “mania de Japonês”; “cozinha Mexicana”, tudo deveria ser repensado e reconfigurado, pela cartilha do politicamente correcto. Mesmo os Ingleses teriam de rever ideias como “Dutch treat” (cada um paga o seu); “French leave” (sair sem dar cavaco. Opá!); “Indian giver” (quem dá, mas quer de volta); “Chinese whispers” (o jogo do telefone sem fio). Ninguém escapa. Há frases e expressões em todas as línguas que escondem silenciosos rancores ao diferente. Sanha de obliterar o outro.

No outro dia o Matuto precisou ir à Caixa Económica Federal (equivalente à Caixa Geral de Depósitos, no torrão Luso). O Matuto chegou cedo. Madrugou. As filas dão sempre a volta ao quarteirão. Levou pão com mortadela, cadeira de praia, e até o jornal debaixo do braço. Já havia uns vinte à frente. Foi quando apareceu, um sujeito magrela, de boné revirado, shorts e havaianas, e andar de quem tem dor nas costas só para as filas da Caixa. Chegou, furando a fila, de mansinho. O Matuto deu um rosnado à pitbull.
— Ô amigo — disse ele, já apontando pra frente da fila —, minha avó tá ali na frente me esperando. Só vim trazer o documento dela. Coisinha rápida…
O Matuto olhou, mas nenhuma senhora parecia reclamar um neto descarnado. Muito menos um neto com cara de malandrinho.
— É sua avó, é? — perguntou o Matuto, desconfiado.
— É sim!
O Matuto coçou o queixo.
— Aquela ali de bengala? Dona Ermelinda?
— Isso! Essa mesma!
O Matuto franziu o sobrolho.
— Engraçado… conheço Dona Ermelinda há anos. Ela sempre foi solteira. Nunca teve filhos. E hoje ela já tem um neto?
O delgadinho hesitou.
— É… é que eu sou neto de consideração.
O Matuto apenas sorriu. O rapaz afastou-se, resmungando. O Matuto sentou-se de volta na sua metafísica cadeira de praia. E filosoficamente comeu a sua sanduíche de mortadela. Essa era nova: “neto de consideração”. O magrelinha tinha tentado o famoso truque do “João sem braço”.

O Matuto observa tudo isso com um ligeiro humor negro. Essa expressão, certamente, também já estará na lista negra dos inquisidores linguísticos. Mas, como velho conservador, ele considera tudo isso uma mera distracção — um gesto de mão, numa tentativa de fugir ao essencial, enquanto o mundo continua a girar com as mesmas artimanhas de sempre.