Angola. Calma tensa

Luanda está em alerta depois de uma onda de violentos protestos. Política do Governo divide MPLA. Raízes dos problemas mantêm-se e geram incerteza

Angola despertou esta semana com uma tranquilidade aparente, mas sob forte presença policial e militar. As autoridades têm a capital, Luanda, em alerta, por  receio de uma nova tentativa de paralisação dos taxistas, em protesto contra o novo tarifário dos combustíveis, e consequentemente das tarifas dos transportes públicos.

 Um protesto que nas últimas semanas levou a que morressem pelo menos 30 pessoas e 277 ficassem feridas na sequência de tumultos em várias províncias angolanas. 

Segundo as autoridades locais, foram ainda detidas 1 515 pessoas, bem como destruídos 118 estabelecimentos comerciais, 24 autocarros públicos, mais de 20 veículos particulares, cinco viaturas das forças de defesa e de segurança e uma  ambulância.

No início da semana, as autoridades anunciaram ainda que três presidentes de associações de taxistas em Angola foram detidos por suspeita de associação criminosa, incitação à violência, terrorismo e atentado contra a segurança dos transportes. 

As detenções foram efetuadas este domingo, em Luanda, «por factos que se configuram na prática dos crimes de associação criminosa, incitação à violência, atentado contra a segurança nos transportes e terrorismo, consubstanciado em fortes indícios do seu envolvimento na promoção dos atos de vandalismo e arruaça contra bens e serviços públicos e privados», justificou o SIC em comunicado.

Ao nosso jornal, o jornalista Carlos Rosado Carvalho descreve a situação como uma «calma tensa», uma vez que «houve uma preocupação do Governo muito grande em pôr as associações dos taxistas a dizerem que não haveria paralisação». Segundo o também professor, «houve uma presença muito forte da Polícia» e a comunicação social pública do país a propagandear que «quem fizesse alguma coisa seria severamente punido».

A Polícia justificou a presença nas ruas e avisou que não tolerará qualquer tentativa que altere a ordem e a tranquilidade públicas, no dia que o Conselho da República reuniu para avaliar a situação de segurança em Angola.

Carlos Rosado Carvalho relata que «há muita contrainformação», mas adianta que foi «ao centro da cidade sem qualquer problema», o que é uma preocupação: «Porque eu normalmente teria apanhado muito trânsito». «A media pública, que defende o Governo, está sempre a dizer que a situação está normal. Mas isso não é normal. O normal é haver trânsito. Não haver trânsito é anormal. E, portanto, eu diria que persiste esta situação de calma tensa», argumenta.

No entanto, deixa o alerta: «É imprevisível, não é? Os problemas estão lá, os problemas não acabaram, os problemas continuam e, portanto, a qualquer momento pode acontecer mais alguma coisa». Segundo Carlos Rosado, «o que motiva os processos é a vida das pessoas, que está cada vez pior, com a perda de poder de compra».

Angola, desde 2014, ano que iniciou com uma queda grande do preço do petróleo, tem uma «economia que nunca se recompôs» e teve várias recessões até 2021 e «isso degradou a condição de vida das pessoas, o nível de pobreza aumentou muito, as pessoas com fome também aumentaram muito, o desemprego da ordem dos 30%». E, portanto, resume, «são essas as causas verdadeiras».

«Esta coisa dos táxis e do aumento de combustível é um pretexto. Mas a situação é grave e não se prevê, pelo menos no curto prazo, melhorias», sentencia. 

Para o professor universitário, o que mais «preocupa é que o Governo está a tratar as pessoas que estão a protestar como vândalos, como marginais, como criminosos» o que significa que «o Governo não percebeu muito bem os sinais de que toda a gente fala», pelo que «há uma enorme probabilidade» de a pressão sobre o Presidente João Lourenço, «se é que é possível aumentar, aumentar». 

«O Presidente convocou o Conselho de Segurança para dizer coisa nenhuma, convocou o Conselho da República também para dizer coisa nenhuma, que a situação está normal, que a situação está controlada, mas a verdade é que nós não sentimos essa normalidade dentro do país e, portanto, não me parece que estas razões se possam inverter nos próximos tempos, pelo menos até 2027», sustenta.  

Divisão no MPLA

Uma opinião que é partilhada por Nelito Ekuiki, líder parlamentar da UNITA, principal partido da oposição, para quem a «contestação ao Presidente João Lourenço tende a aumentar, inclusive dentro do próprio MPLA», já que, «para grande parte da população, ele é visto como um Presidente insensível aos problemas do povo e de postura ríspida; já para muitos militantes do seu partido, é percebido como alguém que dividiu a organização e procurou apagar o legado do ex-Presidente José Eduardo dos Santos». 

Carlos Rosado corrobora que se sabe «que o partido está dividido», mas alerta que o MPLA «é uma espécie de sociedade secreta: as pessoas não falam, aliás, de alguma maneira estão proibidas pelos estatutos. Podem criticar, mas devem fazê-lo primeiro de fora, devem obediência incondicional ao líder do partido e, portanto, os estatutos são muito limitativos».

O professor lembra que houve um deputado que «veio justamente dizer que o MPLA tinha que perceber os sinais que vinham de fora», mas também que «há vários candidatos à presidência do MPLA». Por isso, «sabemos que há uma enorme divisão dentro do MPLA, mas estamos um pouco às cegas, não sabemos exatamente o que é que se passa». 

De acordo com o jornal Club K, a reunião do Conselho da República,  segunda-feira em Luanda, ficou marcada por um momento de tensão entre João Lourenço e o líder da UNITA, Adalberto Costa Júnior. 

O chefe de Estado acusou a UNITA de estar por trás dos protestos em Luanda, descartando, desta vez, as redes sociais como principal origem dos tumultos. Segundo Lourenço, discursos de dirigentes da oposição incentivaram a greve de taxistas. Para sustentar a acusação, apresentou vídeos de afirmações de Adalberto Costa Júnior, do general Abílio Numa e do secretário da UNITA Adriano Sapinãla.

Em resposta, Adalberto Costa Júnior rejeitou as acusações, considerando que os vídeos são antigos e retirados de contexto. Admitiu a existência de discursos inflamados, mas defendeu que o foco deveria estar nas causas reais dos protestos: fome, desemprego e pobreza. 

«A manifestação dos taxistas são diferentes dos grupos de contestação ao poder que reclamam mudança de regime e de paradigma. O que aconteceu recentemente em Luanda não teve carga ideológica apesar de que as autoridades procuram agora transportar as responsabilidades a discursos anteriores de dirigentes da UNITA, e as redes sociais como alegado palco de instigação a revoltas», explica José Gama, analista político angolano, ao nosso jornal.

Mas, para além do Governo e da oposição, a instabilidade que se vive em Luanda, resultado da greve dos taxistas, faz crescer a divisão no seio do MPLA e o ministro do Interior, Manuel Homem, apontado como sucessor de João Lourenço, terá ficado fora da corrida. 

O caos social fragilizou o ministro que tutela as polícias e as imagens dos tumultos colocam em causa a liderança de João Lourenço. O ministro do Interior afirmou que o Governo está atento «às vozes legítimas que pedem melhorias», mas que também estaria preparado «para agir com firmeza contra quem, por motivações políticas ou oportunistas, tenta mergulhar, sem sucesso, o país no caos».  

Mas, passadas quase três semanas, Luanda continua em estado de alerta, o  que contribui para adensar as dúvidas sobre a estabilidade de Angola, sobretudo por parte de investidores estrangeiros.

A situação penaliza Manuel Homem, mas também afeta João Lourenço, que fica mais vulnerável no seio do Movimento Popular a Libertação de Angola (MPLA). Em contrapartida, os opositores, em particular o general Higino Carneiro,  que já assumiu a sua candidatura à liderança do MPLA, ganham peso e aliados. Fernando Piedade dos Santos (Nandó), também eventual candidato à liderança, é outra personalidade em ascensão por ser uma referência em matérias de segurança e autoridade do Estado.

O atual Presidente da República  vai perdendo margem de manobra política, até porque, no seu entender, os protestos foram fabricados. Em vez de reconhecer que os tumultos terão nascido de uma insatisfação social crescente, considerou que os mesmos foram causados por «cidadãos irresponsáveis manipulados por organizações antipatriotas nacionais e estrangeiras através das redes sociais». 

Segundo José Gama, «João Lourenço, quando chegou ao poder, fez promessas de reformas e de democratizar o país, o partido de promover abertura democrática e pluralismo», mas, «no segundo ano do seu mandato, passou a prestar mais atenção na sua manutenção do poder e no partido, deixando o processo de democratização do país de lado o que fez com que se incompatibiliza-se com o povo». 

Assim, «o sentimento pela sua saída pacífica e democrática tem crescido inclusive dentro do partido MPLA, o que levou também a que um militante apresentasse um processo de destituição junto ao Tribunal e o surgimento de petições que em parte são formas de o pressionar a fazer alguma coisa antes de terminar os dois anos que lhe restam no poder.  Mas João Lourenço não é uma pessoa que ceda a pressões politicas», refere José Gama. 

Em Angola, a incerteza é muito grande, quer do ponto de vista económico, quer do ponto de vista social e também do ponto de vista político. De acordo com Nelito Ekuiki, «na raiz da atual situação está a corrupção endémica que há décadas assombra o Governo do MPLA, aliada à má distribuição da riqueza nacional, às profundas assimetrias regionais e à evidente falta de empatia dos governantes para com o povo». Segundo o líder parlamentar da UNITA, «hoje, ergue-se um verdadeiro muro entre quem governa e quem é governado», pelo que a «situação de Angola, neste momento, é bastante grave, marcada por uma profunda crise económica» e por «famílias que sobrevivem alimentando-se de restos retirados de contentores de lixo».  Já no «plano político, o clima é igualmente tenso, com o Governo a restringir progressivamente as liberdades fundamentais dos cidadãos» e «multiplicam-se os casos de detenção de cidadãos, políticos e ativistas por motivações claramente políticas».

Petições

Em ano de cinquentenário da independência do país, que se assinala a 11 de Novembro, há uma petição pública a exigir a «destituição imediata» do chefe de Estado e mesmo dentro do MPLA tenta-se a via judicial para afastar o líder.  «O país entrou no colapso social, onde a fome, a miséria e a pobreza extrema assolam mais de 25 milhões de angolanos», escreve Valdir Cónego, pré-candidato à liderança do MPLA, na providência cautelar que submeteu ao Tribunal Constitucional para pedir a suspensão de Lourenço das funções no partido.

A repressão dos protestos dos taxistas levou a uma outra petição pública, a pedir a «destituição imediata» do Presidente angolano, devido à «repressão, autoritarismo, violações sistemáticas dos direitos humanos e execuções sumárias».

«Os protestos populares contra a subida dos preços dos combustíveis, ainda que argumentos válidos em relação à necessidade de se colocar termo à sua subsidiação, resultaram em repressões violentas, assassinatos e atos de tortura cometidos por agentes do Estado», refere o texto da petição. «Tais acontecimentos ferem de modo direto os artigos da Constituição que proíbem a pena de morte, garantem o direito à integridade física e à manifestação pacífica, e consagram o Estado angolano como baseado no respeito e proteção dos direitos fundamentais». Além disso, acrescenta o texto, o Governo angolano usa «os meios de comunicação públicos – TPA, TV Zimbo, Rádio Nacional de Angola e Jornal de Angola – como instrumentos de propaganda política e desinformação, violando o dever constitucional de garantir uma informação verdadeira, plural e imparcial».

Sobre a petição pública, Carlos Rosado mostra-se cético, uma vez que «já houve um pedido de destituição do Presidente da República apresentado pela UNITA, que não vingou, nem sequer foi discutido, nem sequer foi admitido na Assembleia Nacional e agora o caminho será seguramente o mesmo. O Tribunal Constitucional não decide nada contra o MPLA». 

Para Nelito Ekuiki, os «50 anos de independência tornaram-se um catalisador da contestação, pois o Governo prepara um programa dispendioso num país onde muitos passam fome». Segundo o líder parlamentar da UNITA, a «extensa lista de convidados parece querer exibir uma grandeza que, na realidade, não existe restando-nos apenas a dura e vergonhosa realidade da miséria». 

Já José Gama aponta que a «independência de Angola é o marco que todos angolanos com consciência politica entendem e  se reveem» mas que a data «pode ser também usada para o Presidente unir os angolanos, apresentar os feitos do MPLA nestes 50 anos».

O analista político refere que há  «divisões por as condecorações porem de parte Jonas Savimbi e Holden Roberto, que junto com Agostinho Neto travaram a luta contra o regime português e subscreveram os acordos que determinaram a independência do pais», o que faz com que as celebrações estejam a ser marcadas  «com divisões à volta destas três entidades históricas».

Para José Gama, «os recentes protestos foram circunstanciais» e não «há risco de retorno porque toda sociedade está mentalizada que se cometeu um erro ao sair as ruas partir as próprias lojas de comida que servem  de suplemento para os próprios cidadãos». Segundo o analista político, «todos condenam inclusive os partidos que fazem oposição ao Governo do MPLA». 

Já Carlos Rosado considera que o cinquentenário da independência é indiferente na atual situação. «Não me parece que esta lógica de unidade nacional exista. São os 50 anos, mas penso que os problemas estão lá. O que acontece é que a população está a protestar, insatisfeita, mas o governo diz que são atos de vandalismo. Portanto, quando o Governo não percebe o que está em causa, fica tudo muito difícil».

Já para Filomeno Veira Lopes, «os 50 anos colocam mais em evidência a falência do regime. Permite visualizar melhor o fracasso da governação, pois aos olhos do cidadão o país tem recursos para dar uma vida razoável a todos. O desprezo pela gestão pública, a insensibilidade para os que sofrem, aumenta os níveis de contestação». 

Segundo o presidente do Bloco Democrático, «muitas pessoas condecoradas não foram receber as medalhas e isto ficou conotado com a baixa democrarização do país». O líder político dá como exemplo a «grande contestação em relação a vinda da equipa Argentina à Angola, à propósito do Jubileu, neste contexto de extrema pobreza onde pelo menos o país vai gastar cerca de 8 milhões de dólares». 

Segundo Filomeno Viera Lopes, «as comemorações não vão resolver os problemas estruturais do país, pelo contrário as pessoas sentem que será uma oportunidade para os setores do poder acumularem mais riqueza pessoal à pala doss negócios dos 50 anos». 

Para uma resolução, Carlos Rosado considera que, «se houvesse aqui algumas demonstrações de abertura, de negociação, etc., creio que as coisas podiam naturalmente amainar». Mas o problema «é que são medidas que têm que ser tomadas. Só que elas deviam ter sido precedidas de uma série de políticas e de compensações que não foram».

Na segunda-feira saiu a execução orçamental do primeiro semestre em Angola. «Em seis meses, o Governo gastou o orçamento de um ano para a defesa e segurança, em seis meses, em metade do ano, até gastou mais, em seis meses gastou, para a defesa e segurança, mais 6% do que aquilo que estava orçamentado. Quanto é que gastou na saúde, na educação? 35%. Quanto é que gastou na saúde? 40%». Portanto, «isto diz bem das prioridades do Governo, que parecem ser a repressão, em vez da solução dos problemas. Os números falam por si». 

Filomeno Vieira Lopes considera que a raíz do problema em Angola é uma «situação de miséria, a ausência de instituições democráticas, a compreensão popular sobre o caos governativo bem como o descrédito de que as eleições podem constituir um factor de esperança».

Para Carlos Rosado, «em vez da via do diálogo, o Governo prefere, claramente, o caminho da repressão». Esta é uma atitude nada construtiva e que «não vai levar a solução nenhuma», já que «não vemos no horizonte possibilidades de a situação económica e financeira dos angolanos melhorar». 

Mas mesmo «sem um futuro ou com um futuro incerto, se as pessoas percebem que o Governo está empenhado em melhorar, que é um Governo dialogante, os seus problemas estão a ser discutidos, creio que a atitude vai ser diferente».

Mas, «se não for, vai continuar esta calma tensa e pode ser que um pequeno acontecimento, alguma coisa possa acontecer» É um «risco que ninguém deseja». Em Angola, «as pessoas lutam para sobreviver».