A poesia contra o nojo

O nojo é próprio dos cobardes e dos assassinos de toda e qualquer forma de humanidade – até mesmo da poesia

Neste tempo de cobardias várias e de monstros ou monstruosidades que se vão multiplicando, recordo o que, recentemente, Richard Gere, celebrado actor americano, leu.

Trata-se de um poema de Mahmoud Darwish, um dos mais conhecidos poetas palestinianos e cuja temática se prende com a luta e o exílio, temas caros à própria poesia portuguesa, de Camões (a Canção X) a Garrett («liberdade ou morte!», grito de revolta no contexto do vintismo), de Bocage (voz da liberdade erótica na época das «moscas» do Pina Manique, adepto da Revolução Francesa e, por isso, perseguido) a Antero (poeta-filófoso, espírito maior das «Conferências Democráticas do Casino», de Maio de 1871) e Junqueiro (um precursor da poesia de compromisso); de Cesário («Há, sobretudo, uma causa com a qual simpatizo imenso: é o protesto franco e salutar em favor do povo», escreve a Silva Pinto) e de António Nobre («Vem, Georges, ver o meu país de marinheiros!» a Jorge de Sena (o exílio é nele sinónimo de luta: («Não hei-de morrer sem saber / qual a cor da liberdade!»); de Ramos Rosa (cf. «Poema do Funcionário Cansado») a O’Neill («Um Adeus português» é o grande poema anti-fascista), a Ruy Belo («o meu país é o que o mar não quer»), ou, mais recentemente, poetas como Armando Silva Carvalho (em Lisboas, por exemplo, publicado no ano 2000), ou, Rui Cóias em Europa, colectânea de poesia vinda a lume pela Tinta-da-China em 2016, num tempo em que se adivinhava já que os monstros estavam de regresso e que luta e exílio voltariam a ter lugar na poesia. Ou melhor: que luta e exílio são temas eternos na poesia. Mas não só o exílio e a luta são temas de sempre da poesia. O nojo, na sua dupla acepção, é um tema caro e só por cobardia ou cinismo podemos fingir que, perante a História, não é o nojo – o que causa repulsa e repúdio, náusea e ao mesmo tempo, dor – um outro tema maior da literatura.

O que Richard Gere lê, do grande poeta palestiniano, está centrado na anáfora, no efeito de repetição de certos verbos e na oposição entre quem pode fazer ou dizer certas coisas simples livremente e quem, sob domínio, não pode fazer nem dizer nada. O poema, na verdade, pode ser lido para as mais diversas circunstâncias. Mas estamos em 2025: no tempo em que a cobardia viceja e o oportunismo é despudoradamente praticado. Um povo morre. Um povo inteiro. Não está em causa já saber quem tem razão neste conflito. O que vemos perante nós é um genocídio levado a cabo por aqueles que, nos anos 30 e 40 do século passado, foram as vítimas do nazi-fascismo. O boomerang da História é o subtexto do poema de Mahmoud Darwish. Transcrevo-o na íntegra:

PENSE NOS OUTROS

(Mahmoud Darwich)

«Enquanto preparas o teu café da manhã, pensa nos outros;

[Não te esqueças de alimentar os pombos]

Enquanto travas tuas guerras, pensa nos outros;

[Não te esqueças daqueles que pedem a paz]

Ao pagares a tua conta de água, pensa nos outros;

[Que buscam sustento nas nuvens, não numa torneira]

Enquanto voltas para casa – para a tua casa – pensa nos outros;

[Como aqueles que vivem em tendas]

Enquanto dormes contando planetas, pensa nos outros;

[Os que não conseguem encontrar um lugar para dormir]

Enquanto te libertas das metáforas sofisticadas, pensa nos outros;

[Que perderam o direito de falar]

E enquanto pensas nos outros, distantes, pensa em ti.

[E diz: Quem me dera que eu fosse uma vela na escuridão]»

Há-de chegar o dia em que toda a crueldade deste nosso tempo, toda a rudeza e brutalidade, toda a mentira e perfídia acabará. Tal como diz o poema de Darwish, teremos de pensar nos outros. Isto é: teremos de não esquecer. E não esquecer é regressar à poesia: a musa da poesia lírica é Mnemósina, deusa da memória. O que a Europa e os Estados Unidos de Trump, ou o Ocidente do consumismo e da superficialidade, do materialismo e do individualismo esqueceram foi simples: esqueceram-se do Outro. As teses de Edward Said continuam actuais: se houver salvação, ela virá do Oriente. O poeta palestiniano sabe disso, tal como Camões sabia. Ou Garrett, ou Sena. Experimentar o exílio dentro da própria pátria é um tópico frequente: o poeta, estrangeiro em sua própria terra. Rimbaud fez bem em partir, disse-o René Char. Foi na Abissínia – como Camões séculos antes – que o poeta das Illuminations soube o que era atingir, pela poesia, o estádio pleno de filho do sol. É certo que houve Céline e houve os Pachecos desta vida e da outra. Ninguém esquece certas figuras do Mal: de Mussolini e de Hitler, de Estaline e de Pol Pot a tantos, tantos outros. Mas o poema de Darwish não é dirigido senão ao cidadão comum. Àqueles que podem viver de gestos simples, mas que esquecem o Outro. Não é um poema sobre a Palestina – é sobre o humano. O esquecimento da poesia. 

Um verso de Luís Quintais – «Como esquecer? Como não esquecer?» – encerra o paradoxo, e explica-o, do poema do poeta palestiniano: as democracias e os que sempre foram exilados ou adeptos da luta em nome do Homem exilado têm, nestes últimos tempos, esquecido muito à custa da ideologia da diversão. Discutimos, divergimos, distraímo-nos. Todavia, a poesia faz-se, uma e outra vez, contra o nojo. E haverá, como René Char, ou como Sena, quem nunca se esqueça de um facto simples: o nojo é próprio dos cobardes e dos assassinos de toda e qualquer forma de humanidade – até mesmo da poesia. Mahmoud Darwish, que Richard Gere lê, será lembrado. Os pequenos homens ocos deste tempo passarão e levarão todo o seu nojo consigo. Está escrito.