A Síndrome Byron

Hoje, como ontem, não é falta de notícias, é excesso de distração. Byron é o O. J. Simpson e Gaza é o Ruanda. E nós? Nós somos os mesmos imbecis, só que com smartphones.

Andy Byron beijou uma mulher num concerto dos Coldplay. Não era a mulher dele e o mundo parou literalmente. Debates globais nas redes sociais, análises sociológicas infinitas, memes que se multiplicaram como vírus. A humanidade inteira teve uma opinião sobre a vida privada de um gajo qualquer que ninguém conhecia. Byron tornou‑se mais famoso que Mandela, mais discutido que Gandhi e até mais viral do que a própria pandemia.

No mesmo fim‑de‑semana em que Byron se tornava uma verdadeira celebridade, o Ministério da Saúde de Gaza confirmava mais de 60 000 palestinianos mortos, incluindo 17 000 crianças. A UNICEF lembrava que mais de dois milhões de pessoas, quase toda a população da Faixa de Gaza, estão deslocadas e sem acesso regular a água potável. O Sudão, mergulhado numa guerra civil esquecida, soma pelo menos 150 000 mortos. E há trinta anos, em apenas cem dias, cerca de 800 000 tutsis e hutus moderados foram abatidos no Ruanda enquanto as televisões ocidentais preferiam acompanhar em direto a fuga de O. J. Simpson num Bronco branco.

Hoje, como ontem, não é falta de notícias, é excesso de distração. Byron é o O. J. Simpson e Gaza é o Ruanda. E nós? Nós somos os mesmos imbecis, só que com smartphones. O caso Byron teve direito a manchetes em dezenas de países, análises psicológicas de influencers que mal sabem escrever e até remixes musicais no TikTok. Mas, no mesmo fim de semana, crianças morriam de sede, sem direito a palco, talvez porque lhes faltava a produção audiovisual adequada. Faltava‑lhes o enquadramento musical dos Coldplay.

Esta indignação seletiva não começou com o Wi‑Fi, desengane‑se! Em 1348, enquanto a Peste Negra dizimava um terço da Europa, as elites organizavam torneios e banquetes. Os nobres franceses gastavam fortunas em roupas extravagantes, discutindo qual o comprimento apropriado das mangas enquanto servos morriam aos milhões e os cadáveres se empilhavam nas ruas de Paris.

Durante a Segunda Guerra Mundial, Hollywood fazia Judy Garland cantar “Over the Rainbow” enquanto Anne Frank escrevia num sótão. A indústria do entretenimento nunca parou porque, se parasse, venderia menos bilhetes. Sempre houve um qualquer Nero a tocar lira enquanto Roma ardia, com direito a cortejos e banquetes em plena hecatombe. A diferença é que hoje democratizámos a distração. Qualquer um com um smartphone pode escolher entreter‑se com escândalos sexuais enquanto crianças morrem de fome. Como dizia Estaline, um homicídio é uma tragédia, mas um genocídio é uma mera estatística.

As redes sociais, por sua vez, transformaram a banalidade em espetáculo. Não basta cometer adultério, é preciso transformá‑lo em matéria de hashtag. A moralidade tornou‑se uma performance em que partilhar um quadrado preto no Instagram dá o mesmo conforto que salvar uma vida, desde que não implique esforço. Sim, é psicologicamente mais confortável destruir a reputação de um executivo infiel do que enfrentar a complexidade de um genocídio. Byron é um alvo fácil, Gaza é complicada. Logo, Byron.

O que temos hoje, nesta banalização do mal, é a espetacularização do banal, em que nos damos ao luxo de transformar dramas pessoais triviais em eventos históricos, enquanto verdadeiras catástrofes se tornam “conteúdo pesado” que ninguém quer partilhar. Se a execução pública medieval era literal, hoje é simbólica, com empregos destruídos, reputações despedaçadas, vidas privadas expostas numa praça digital onde todos são juízes e o réu nunca tem direito a contraditório.

A multidão digital é mais cruel do que qualquer carrasco medieval porque tem a ilusão de superioridade moral. Como na cena do apedrejamento em “A Vida de Brian”, onde a multidão se junta para executar alguém por uma transgressão menor, nós juntamo‑nos digitalmente para atirar pedras virtuais. A diferença é que os romanos sabiam que eram bárbaros enquanto nós achamos que somos civilizados.

O mais obsceno? Celebridades que ganham milhões postam stories sobre “consciousness” e “paz mundial” enquanto se mantêm religiosamente em silêncio sobre guerras financiadas pelos mesmos governos que lhes dão contratos publicitários. Katy Perry, por exemplo, até pode falar de amor universal, mas nunca mencionou o Iémen — e até vai ao espaço, apesar das preocupações ambientais que tanto apregoa. Oprah até pode promover a “gratidão”, mas o Sudão não existe no seu universo espiritual. Enquanto isso, instrutores de yoga fazem vídeos sobre “energia positiva” com a bandeira da Ucrânia ao fundo e onde, curiosamente, nenhum chakra se alinha com a Palestina.

Os algoritmos das redes sociais silenciam sistematicamente certas realidades enquanto promovem dramas amorosos como se fossem textos sagrados. Baudrillard tinha razão quando dizia que vivemos numa era de simulacros em que o símbolo vale mais do que a realidade. É mais fácil cancelar Byron do que tentar parar um genocídio. É o equivalente digital da cena de “A Vida de Brian” em que Brian grita à multidão: “Vocês são todos indivíduos!” e todos respondem em uníssono: “Sim! Somos todos indivíduos!”

Somos moralmente narcisistas em alta definição, porque nos indignamos não pelo sofrimento alheio, mas pelo que essa indignação comunica sobre a nossa superioridade ética. “Eu sou o tipo de pessoa que se importa.” Em seguida, voltamos ao brunch, à Netflix, ao próximo escândalo.

A História vai julgar‑nos com brutalidade. Vão perguntar como é que uma geração com acesso a toda a informação do mundo escolheu ficar obcecada com a vida amorosa de executivos enquanto assistia passivamente a genocídios transmitidos em direto. Vão estudar‑nos como estudamos os alemães que fingiam não saber dos campos de concentração. A diferença é que os alemães tinham a desculpa da censura, nós temos Google, enfim!  Mais uma vez, como diria Brian dos Monty Python: “Vocês não precisam de me seguir! Pensem por vocês próprios!” Mas provavelmente esta citação também vai virar meme e perder todo o sentido porque é isso que fazemos melhor ao transformarmos sabedoria em entretenimento, tragédia em conteúdo e consciência em produto.

No fim, enquanto estas palavras rolam no ecrã, crianças morrem de sede e sobreviventes dormem sob escombros. E, quando fechares esta janela, outras vão abrir‑se: um novo escândalo, uma nova performance da virtude. Porque amanhã aparecerá sempre mais um Byron. E Gaza, ou o Sudão, ou qualquer outro inferno invisível, pode esperar.