Mordor e todos nós

Quando a sombra de Mordor desce sobre a Terra Média, desvanecem-se todas as cores e restam só duas: o preto e o branco.

A luta pelas liberdades, pelo direito à diferença e por sermos nós próprios é uma luta tão velha quanto a Terra Média. Essa Terra Média que é pátria de civilizações e raças distintas, mas irmanadas no mesmo essencial apego de todos e de cada um a serem diferentes mas fraternos na diferença, a viverem a sua vida como quiserem e da forma que quiserem, no respeito de todos por cada um e de cada um por todos. Uma luta que dura desde sempre porque nós, na Terra Média, não estamos sós.

Algures no horizonte, lá longe, mas sempre demasiado perto, num ponto cardeal sempre impreciso, está Mordor. E no centro de Mordor, Sauron.

Mordor, o império de Sauron, é um mundo essencialmente igualitário. Lá reina o ódio à diferença e à liberdade de espírito. Um mundo de orcs fabricados em série, orientados por um pensamento único, iguais e entre si permutáveis. Sauron pesca nas águas turvas das rivalidades da Terra Média, a Terra de Diferença, apostando na ingenuidade de uns, na cupidez de outros e na cobardia de quase todos.

Cedo de mais se decretou o fim da História. Porque Mordor estará umas vezes a Oriente, outras a Ocidente, ora a Norte, ora a Sul, ora igualitário e coletivista, ora igualitário e teocêntrico. Mas está e estará sempre algures, latente, no seu ódio à diferença, à autonomia e à capacidade de julgar, de forma serena, os factos e as coisas, que tão bem caracterizam os habitantes da Terra Média.

E quando, ciclicamente, a sombra de Sauron se aproxima e desce sobre a Terra Média, há sempre uma Minastirith antiga, civilizada e culta. Mas uma Minastirith decadente e neutral governada por um usurpador politiqueiro e medíocre, instalado num palácio infinitamente maior do que ele.

Mas também há sempre, para salvação da Terra Média, um Shire de individualistas simples mas cheios de bom senso, agarrados a uma paixão antiga pela diferença, que se recusam a verem-se nivelados por qualquer Sauron do Sul ou do Norte, do Ocidente ou do Oriente; e que, aliados aos poucos – há sempre alguns – que em Minastirith se não dobraram ao medo e à indolência, fazem frente aos cavaleiros sem rosto do senhor de Mordor e aos orcs fabricados a perder de vista nos subterrâneos da Saruman, o feiticeiro de Mordor

Quando a sombra de Mordor desce sobre a Terra Média, desvanecem-se todas as cores e restam só duas: o preto e o branco. Apenas em Minastirith, toldados pela cobardia, julgam continuar a distinguir uma infinidade de nuances. Porque quando a sombra de Mordor desce sobre a Terra Média, só há dois caminhos: vencer ou ser vencido.

A Terra Média venceu, até hoje. Graças ao Shire e a poucos mais, uma vez e outra a sombra de Mordor tem recuado da Terra Média – do Shire, de Gondor. Irá isso acontecer outra vez? A Minastirith decadente, hoje Bruxelas, capital de Gondor, hoje Europa, irá uma vez mais despertar do seu sono venenoso pejado de sonhos vazios? Os hobitts do Shire, hoje América, conseguirão fazer frente a Sauron? A Terra Média, hoje Ocidente, conseguirá manter-se à superfície da História, uma vez mais salva pelo Shire? Sauron em tudo manda. Ou quase tudo: Acaba de perder o Shire, que se revoltou. Mas em Gondor, e a partir de Minastirith, os orcs estão por todo o lado e em todo o lado dominam. Mas há, como sempre, quem resista. E com a ajuda do Shire, talvez consigam, uma vez mais, vencer.

Vice-presidente da Assembleia da República