No passado dia 3 de setembro, por volta das 18h, deu-se em Lisboa uma das suas maiores tragédias, motivada por causas não naturais – o descarrilamento do elevador da Glória, que tantas vezes utilizei, e se tornou, ao longo dos anos, uma das maiores atracções turísticas da capital.
Não tendo formação em engenharia, nem sabendo o que quer que seja sobre ferrovia, isso não me impede, contudo, de colocar algumas questões não técnicas, cuja resposta deve ser dada a todo o país e que vou categorizar em três grupos: processo administrativo, organização industrial e componente financeira.
Processo administrativo
Sabe-se que o Código dos Contratos Públicos (Decreto-Lei nº 18/2008, de 29 de Janeiro) estabelece um conjunto de obrigações – aqui entre nós, até em número e grau de exigência superiores ao que estipula a Directiva Europeia de que deriva – que as empresas públicas devem cumprir para lançar concursos de aquisição, avaliar propostas e adjudicar os serviços. Nesta matéria:
- Quantas propostas foram recebidas, e de que empresas, por ocasião do concurso que levou, em 2019, à adjudicação dos serviços à já tão famosa MNTC, conhecida simplesmente por Main? Para esse efeito, houve algum processo de pré-qualificação? A empresa tem o seu Sistema de Gestão da Qualidade certificado? E em 2022, ano da renovação do contrato, que tramitação foi adoptada?
- Quais são as condições objectivas para que uma empresa com 28 trabalhadores preste todos os serviços associados aos seus diversos clientes, por exemplo Carris, STCP e piscinas municipais? Subcontrata (só podendo subcontratar com permissão dos clientes), a quem e, nesse caso, quem assume a responsabilidade como prime contractor?
- O que incluem os serviços, estipulados no contrato, de assistência permanente à frota de ascensores/ elevadores, abrangendo manutenção preventiva, predictiva, curativa e correctiva (as tipologias “de catálogo”), sabendo-se que os valores mensalmente debitados à Carris – de cerca de 6 mil €, segundo li e algumas contas que fiz a partir do Relatório e Contas da empresa relativo a 2024 – compreendem deslocação, mão-de-obra e materiais?
- Uma vez que o concurso aberto em Abril passado foi anulado – por nenhuma empresa concorrente ter estado disponível para fazer o trabalho requerido pelo preço base estabelecido pela Carris (normalmente considerado como preço máximo) – qual foi o montante por que foram adjudicados ainda à Main os serviços correspondentes a 5 meses de manutenção após 31 de Agosto?
- E quando foi feito o ajuste directo, sabe-se? Antes do dia 31 de Agosto, ou já depois?
- Não seria expectável que, lançado tal concurso em Abril, dificilmente seria possível assegurar que a empresa a seleccionar começasse a trabalhar no dia 1 de Setembro?
- Não existe na Carris quem avalie tecnicamente ou certifique a “eficácia” das actividades de manutenção a cargo da Main?
Organização industrial
Alguns temas que entendo devem ser aqui elencados:
- As inspecções diárias, ainda por cima se têm duração aproximada de 30-45 minutos, só podem ser inspecções visuais. A ser assim, como pode dizer-se que tudo estava em condições?
- Quem estabeleceu, e com base em que critérios, a periodicidade das inspecções, em especial a que se relaciona com o cabo de ligação entre as duas cabinas, fixado ao leito de cada uma delas através de um carrinho especial, designado por “trambolho”?
- Previa-se que a substituição do cabo fosse efectuada dentro de 263 dias, atendendo aos 600 dias de vida útil estimada e ao facto de o acidente se ter dado ao 337º. Pergunta: essa duração fixada foi sempre a mesma, independentemente da frequência de utilização do ascensor? Dado que, entre 2022 e agora, a procura aumentou cerca de 50%, justificava-se alguma alteração deste prazo? E quem a fixou?
- Quando ocorreu a mais recente verificação dos “trambolhos”? E não deveria essa verificação significar – como sucede com os equipamentos fabris – a imobilização das duas cabinas durante algum tempo? Se os horários de funcionamento do ascensor são entre as 7.15 e as 00.25, haveria condições práticas para essa verificação nas restantes horas do dia (digamos entre as 00.45 e as 7.00)? Os 3 dias de Maio deste ano em que o ascensor não funcionou foram utilizados para que tipo de manutenção?
Componente financeira
Segundo li, e acima refiro, por cada mês de serviço ao ascensor da Glória, a Main factura aproximadamente € 6 000 sem impostos, ou seja, € 200/dia, tudo incluído, deslocação, mão-de-obra e materiais. Perguntas que me surgem:
- Reconhecendo a simplicidade do meu raciocínio, este valor de € 200/dia equivale a aproximadamente 48 viagens de ida e volta. Será que, num dia completo, não haveria passageiros que pagassem a tarifa de bordo – € 4,1 – em quantidade suficiente para assegurar a receita necessária para manter a infraestrutura a funcionar devidamente e ainda para gerar lucro operacional? Ou mesmo para suportar um acréscimo do custo do trabalho a realizar pela dita Main?
- Apesar de o relatório e contas de 2024 da Carris não permitir identificar (não dizendo que essa informação não esteja disponível) nem a quantidade de passageiros transportados nem os respectivos proveitos relativamente aos ascensores – há agregação dos dados de eléctricos, elevadores e ascensores – o acréscimo da procura não foi de molde a que a Carris pudesse pagar o valor proposto pelas entidades que participaram no concurso lançado em Abril, e depois anulado?
- Qual será o impacto deste terrível acidente em termos de redução da procura turística em Lisboa e, acima de tudo, dos montantes indemnizatórios que por certo serão pedidos pelos familiares dos mortos ou por aqueles que tiveram a felicidade de sobreviver, mesmo que fisicamente debilitados?
Sejam quais forem as respostas a estas questões, duma coisa temos todos a certeza: Lisboa, ou qualquer outra localidade em que se encontrem ascensores ou elevadores em operação, não pode permitir que acidentes deste tipo, motivados por causas não naturais, se repitam! Vidas que se perdem por ausência de modernização de infraestruturas minam a confiança dos locais e dos estrangeiros que aqui passam uns dias por ano. Portugal devia merecer melhor cartão de visita!