Doutor Cupido

O retrato de Sargent cristaliza esse duplo fascínio – o do médico e o do homem mundano…

Uma das grandes exposições europeias deste outono será Sargent – Os Anos de Paris (1874-1884), no Museu de Orsay. Trata-se da primeira grande mostra que a capital francesa dedica ao artista norte-americano John Singer Sargent (1856-1925), cidade onde estudou e forjou o estilo de pincelada solta e luminosa que se tornaria a sua marca. Entre as obras em destaque estará Dr. Pozzi em Casa – na imagem –, hoje pertencente ao Museu Hammer, em Los Angeles.

Samuel-Jean Pozzi (1846-1918), retratado por Sargent em 1881, foi um cirurgião e ginecologista francês – reconhecido como um dos fundadores da ginecologia moderna em França – e uma figura proeminente dos salões parisienses da Belle Époque. Em 2019, a sua história, de contornos cinematográficos, foi contada pelo escritor britânico Julian Barnes no livro O Homem do Casaco Vermelho, editado em Portugal pela Quetzal.

O retrato de Sargent cristaliza esse duplo fascínio – o do médico e o do homem mundano: a pose altiva, os dedos longos, que Barnes descreve como «a parte mais expressiva do retrato», e a indumentária vermelha, evocando papas e cardeais dos velhos mestres, sugerem simultaneamente a perícia cirúrgica e uma aura de sensualidade. A borla do cinto, pendente, é comparada pelo escritor a um «falo de touro». Não por acaso, Pozzi era apelidado de «Amor Médico», numa referência à peça de Molière, e chamado de «Sereia» entre os amigos. Sem rodeios, a americana Alice Heine, princesa do Mónaco, dizia que era um homem «horrivelmente atraente». 

Formado pela Faculdade de Medicina de Paris, onde estagiou em cirurgia, defendeu aos 27 anos uma tese sobre fístulas pélvico retais. Apenas dois anos depois, já era professor da instituição. Antes, passara por vários hospitais e servira na Guerra Franco-Prussiana, no Serviço de Saúde Militar. Autor de um tratado de ginecologia clínica e cirúrgica que se tornou referência em toda a Europa e titular da primeira cátedra de ginecologia em França, defendia sempre que possível abordagens menos agressivas – como a miomectomia, que consiste na remoção de miomas uterinos preservando o útero e ovários –, em contraste com a histerectomia – a remoção total do útero –, procedimento a que, na época, por vezes se recorria para tratamento do que se chamava ‘histeria feminina’.

O seu nome permanece associado à pinça de Pozzi, ainda hoje utilizada em procedimentos ginecológicos para segurar o colo ou o corpo uterino. Foi também um dos primeiros cirurgiões franceses a adotar e a defender as práticas antissépticas do britânico Joseph Lister, reduzindo significativamente as infeções pós-operatórias. Durante 35 anos trabalhou no hospital público Lourcine-Pascal, que, sob a sua influência, em 1893 passou a chamar-se Hospital Broca, em homenagem ao seu mestre Paul Broca, célebre cirurgião e antropólogo. Para além da carreira médica, Pozzi traduziu para francês A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais (1872), de Charles Darwin.

Capaz de transformar a vida das mulheres através da sua prática clínica, encarnava, porém, uma complexa dualidade: a sua faceta de incorrigível mulherengo infligia constante tormento à esposa, a muito rica Thérèse Loth-Cazalis. Graças à sua fortuna, abriu consultório privado na Place Vendôme, ascendendo rapidamente à categoria de médico da moda. Ateu, racional e progressista – embora defendesse que a prática da medicina devia ser interditada às mulheres –, apoiou Alfred Dreyfus, em contracorrente ao forte antissemitismo da sociedade francesa. Manteve estreitas relações com artistas, escritores e figuras como o príncipe Edmond de Polignac e Robert de Montesquiou, dois dos maiores dandies da Belle Époque – que Barnes descreve como uma época «decadente, frenética, violenta, narcisista e neurótica».

Entre as muitas amantes do médico contaram-se a atriz Sarah Bernhardt – a quem chegou a extrair um quisto no ovário –, a viúva do compositor George Bizet, a cantora lírica Georgette Leblanc e Emma Fischoff, mulher culta e melómana, também casada, que permaneceu ao seu lado até ao final da vida.

O desfecho foi trágico: em 1918, um antigo paciente, convencido de que tinha ficado impotente após uma cirurgia, pediu-lhe que o operasse novamente. Perante a recusa, disparou três vezes contra o médico antes de se suicidar. Pozzi ainda foi operado de urgência, mas não sobreviveu.

É esta fascinante figura que, a partir de 23 de setembro, regressa à Cidade-Luz através da obra de Sargent.