A Carris lançou, em fevereiro, um caderno de encargos para a «remotorização» de 57 elétricos centenários ainda a circular Lisboa, sem respeito pelos conhecimentos atuais da Engenharia para a proteção das cabines de passageiros. A empresa municipal, há sete meses, ainda não valorizava os ensinamentos de diversos acidentes ocorridos nos últimos anos, alguns dos quais estiveram perto de causar tragédias.
Em dezembro de 2018, um elétrico desfez-se contra uma esquina no bairro da Lapa, depois de descer a rua desgovernado. A cabine de madeira ficou «espalmada, como uma folha de papel», na descrição, rigorosa, do jornalista Sebastião Almeida, do Público. Em 2019, um aparelho da carreira 28, grande atração para turistas e carteiristas, rachou-se de frente contra um autocarro, em plena Baixa pombalina. Estes dois descarrilamentos provocaram 36 feridos.
Quem olhar hoje para as imagens, sobretudo do primeiro acidente, pergunta-se que força divina evitou uma mortandade. «Já vimos que a caixa de madeira dos passageiros se desfaz», declara Rui Loureiro, ex-presidente das empresas públicas REFER e Transportes de Lisboa, que reunia o Metropolitano, os barcos da Transtejo e a frota da Carris. «Ficaria mais barato comprar elétricos novos», defende este engenheiro de Sistemas Elétricos, com formação em Mecânica. A substituição «seria muito mais segura para os passageiros, sem deixar de preservar a aparência dos elétricos antigos».
Em fevereiro, apesar de ter recebido alguns avisos, a Carris persistia numa opção de risco. «Os elétricos têm de ser remodelados a partir dos elétricos pré-existentes, não sendo aceitável a sua destruição e substituição por novos», prescrevia o caderno de encargos, publicado no âmbito de uma consulta prévia a fornecedores.
Depois da tragédia, a empresa municipal travou a fundo o processo de contratação. «Na sequência do acidente do Ascensor da Glória, todos os procedimentos futuros relativos a material circulante do modo elétrico serão reanalisados à luz das conclusões que venham a ser obtidas no âmbito da investigação em curso», declarou ontem o presidente da Carris ao Nascer do SOL. A empresa até já admite inverter a marcha. Rui Bogas compromete-se a seguir «as recomendações da Equipa de Missão criada pela Câmara Municipal de Lisboa», que reúne peritos do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), do Instituto Superior Técnico (IST) e da Ordem dos Engenheiros. Os 16 mártires da Calçada da Glória, pelo menos, podem ter evitado outros no futuro.
Antes da tragédia, o valor patrimonial das carruagens, vigiado pelo Instituto Português do Património Arquitetónico (IPPAR), pesou sempre mais do que a proteção da vida humana. O caderno de encargos jurava obediência «a todas as normas europeias aplicáveis à ferrovia ligeira», mas desde que «não conflituem com a manutenção de certos aspetos históricos do veículo». A empresa municipal até pedia aos candidatos a instalação de «dispositivos de absorção de energia», tecnologia aplicada aos comboios, na Europa, desde os anos 1990, graças ao desenvolvimento tecnológico produzido por consórcios internacionais de universidades e empresas de transporte.
Rui Loureiro, que liderou um desses projetos, em que Portugal esteve representado pelo IST e a antiga fábrica de comboios SOREFAME, garante que os desejos da Carris são incompatíveis com a preservação, na íntegra, da carroçaria histórica. O Nascer do SOL recolheu a mesma opinião junto de alguns fornecedores de equipamento ferroviário. Um deles garante que seria impossível apresentar-se a concurso com estas especificações técnicas, porque «a Carris está a propor à indústria um bacalhau com asas».
Passageiros ou gravuras rupestres?
O IPPAR, organismo que tutela as gravuras de Foz Côa e os edifícios históricos, manda mais nos elétricos e funiculares de Lisboa do que qualquer autoridade de transportes. «Os ascensores da Glória e do Lavra estão classificados como monumentos nacionais, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 309/2009, e são considerados instalações históricas», expõe João Caetano, presidente do Instituto da Mobilidade e Transportes (IMT), por escrito, ao Nascer do SOL.
O problema tem raízes num decreto de 2002, do Governo de Durão Barroso, que transpôs para o ordenamento jurídico uma diretiva emitida dois anos antes pela União Europeia. Esse diploma distinguiu os funiculares puxados por um cabo com força própria dos que têm motores elétricos instalados nas carruagens, como o Glória e o Lavra. Conforme parecer do Instituto Nacional de Transporte Ferroviário para a Carris, em 2003, o IMT «não tinha obrigação» de os fiscalizar. O IMT ficou apenas a supervisionar o funicular da Bica e o elevador de Santa Justa, porque em ambos o cabo é a força motriz.
Há cinco anos, o Governo de António Costa transpôs outro regulamento comunitário. O decreto-lei 34/2020 faz depender de autorização do IMT «pedidos de alterações significativas» nos elevadores históricos, caso «afetem a conceção e os sistemas de segurança». O IMT garante que, «até à data, não há registo de qualquer pedido de autorização à ANSF/IMT para alterações nos ascensores da Glória e do Lavra». Eduardo Feio, presidente desta autoridade de transportes nos seis anos anteriores, rejeitou pronunciar-se.
Tiago Lopes Farias, presidente da Carris entre 2016 e 2022, também não respondeu às nossas mensagens. Já o atual presidente da empresa, Pedro Bogas, declara que «o entendimento vigente e sufragado pelo IMT é de que o regime legal somente se aplica ao Ascensor da Bica e ao Elevador de Santa Justa, pelo que, para estes equipamentos, todos os procedimentos previstos na legislação foram cumpridos».
Então, quem se ocupa da segurança dos milhões de passageiros dos elétricos por cabo e dos elétricos de rua? O Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e Ferroviários (GPIAAF) declara que «não conseguiu encontrar informação fidedigna e confirmada sobre qual é o enquadramento legal, nem qual é a entidade pública» responsável pelo assunto.
«Esta situação choca-me e expõe-nos ao ridículo perante a Europa», lamenta Manuel Cruz, professor jubilado do IST e ex-presidente da SOREFAME. «Não falhou só a redundância dos travões, mas também a inspetiva. A Carris não tem ninguém a fiscalizá-la», resume Lúcio Machado, professor de Engenharia na Universidade do Minho especializado na investigação de acidentes.