O assassínio de Charlie Kirk trouxe a guerra cultural entre as forças da direita e da esquerda nos Estados Unidos ao rubro. Naturalmente que as vozes mais altas no discurso são as mais extremadas de cada lado. Do lado da direita apela-se a retribuição e vingança e elevação de Charlie Kirk a mártir nacional ao nível de Lincoln ou Kennedy. Do lado da esquerda menospreza-se a vida de uma pessoa, ataca-se o conteúdo das suas opiniões e procura-se encontrar motivos de extrema-direita no presumível assassino de Charlie. Ecos deste debate ouvem-se por todo o mundo. Este debate pode escalar a conflito e novas tragédias podem surgir.
Esta crise apresenta uma oportunidade única de claridade moral e epistemológica de parte a parte que pode contribuir para um passo em frente na elevação do debate democrático. A ser aproveitada, melhorariam as democracias por todo o mundo, e prejudicariam o argumento de ditadores de que a sua queda e mudança de regime levaria a violência e anarquia.
Confesso que não conheci Charlie nem ouvi falar dele antes da sua morte. Vejo isso como uma vantagem nesta análise em que as paixões em termos políticos ofuscam os valores morais e a lógica.
Olhando para os factos puros e duros, este episódio é um ataque direto ao conceito de democracia. Uma pessoa foi a uma Universidade para debater ideias políticas, pegou num microfone, falou e levou uma resposta de bala. Nestas condições o debate democrático não pode surgir de forma espontânea e livre. Quem não se repugna com estes factos, seja qual for a opinião de quem levou com uma bala, não acredita na primazia de sociedades livres e democráticas.
Há várias formas de organizar sociedades. Ditaduras, autocracias ou mesmo Monarquias absolutas acreditam em censura e em consequências severas para quem tenha opiniões ‘indesejáveis’. Em sociedades livres e democráticas repudiamos isso. Mas naturalmente que é fácil defender a opinião de pessoas com quem concordamos, ou que pelo menos não discordamos veemente. O verdadeiro teste, contudo, surge quando alguém tem opiniões que desprezamos. Quem acredita em democracia tem de acreditar que vale a pena criar condições para que pessoas possam livremente exprimir opiniões que consideramos ofensivas (desde que não incitem a violência ou crimes). Se isso não acontece, então secretamente desejamos um absolutismo daqueles que connosco concordam.
A proteção da liberdade e da democracia representam o ‘sistema operativo’ das sociedades ocidentais. As diversas propostas de política e escolhas governamentais são apps Nque correm e se apoiam nesse ‘sistema operativo’. Assim, se a sociedade perde consenso no sistema democrático, toda a construção do Estado e das diversas forças políticas se desmorona. Tal como se o sistema operativo do nosso celular se infetar com um vírus e deixar de funcionar, também todas as apps do nosso telefone deixaram de funcionar.
Por outro lado, a proteção do ‘sistema operativo’ para assim que este esta protegido. Não pode ser abusado para se calar ou abafar algumas ‘apps’. Por exemplo, a pressão feita para cancelar o show de Jimmy Kimmel, por muito provocatórias e destrutivas que as suas contribuições tenham sido, não pode ser tolerado.
Os que acreditamos em democracia e liberdade, confiamos que com o decorrer do tempo os argumentos, fatos e sabedoria coletiva guiarão a sociedade na direção certa. Não acreditam na sabedoria de um déspota ou comité central benévolo.
Ataques ao sistema democráticos como este perguntam: vamos arriscar uma guerra civil e o desmoronamento da liberdade que muitos dos nossos antepassados deram a vida para proteger? Temos em mente um melhor sistema de Estado?