Kimmel, o filho de Saturno

Hoje, o desejo de ‘liberdade de expressão’, à esquerda e à direita, não passa de um desejo de hegemonia do pensamento mascarado quando se está do lado que não detém o poder.

Há pouco mais de uma semana, a ABC decidiu suspender, por tempo indefinido, o programa Jimmy Kimmel Live! apresentado pelo famoso humorista norte-americano. Ao que parece, os motivos do cancelamento foram as declarações de Kimmel sobre o assassinato de Charlie Kirk. O comediante deu a entender que o assassino era apoiante do movimento MAGA – algo que já se sabe ser mentira – e que a direita está a aproveitar a morte de Kirk para «ganhar pontos políticos». Seguiu-se um vídeo de Donald Trump em que se mostra aparentemente indiferente quando questionado sobre como está a lidar com a morte do jovem conservador.

Sim, Kimmel mentiu. E sim, Kimmel é um humorista vincadamente de esquerda que até se poderia enquadrar no espetro do wokismo, que nunca poupou críticas, por mais infundadas que fossem, a Trump. Mas dará isso direito a que o seu programa seja cancelado por pressões da Comissão Federal de Comunicações_(FCC)? Não.

Por isto, a ira dos progressistas quanto ao caso é compreensível. Mas importa relembrar um aspeto importante: os defensores do wokismo sempre pugnaram pelo cancelamento de ideais divergentes. Robespierres do nosso tempo, acabam na guilhotina onde têm decapitado tantos presumíveis inimigos da revolução. «A Revolução, como Saturno», observava Pierre Vergniaud, que também morreu na guilhotina durante o Terror que se seguiu à Revolução Francesa, «devora os seus filhos». Mas este não é o caminho a seguir, principalmente por parte de uma direita que se diz liberal ou conservadora porque está a cometer os mesmos erros que tão duramente (e bem) denunciou, e está a desviar-se das matrizes fundacionais da sua filosofia política. A ‘censura do bem’ não encontra espaço nos contornos liberal-conservadores.

Observamos que o discurso político é hoje muito marcado por apelos à liberdade de expressão e à pluralidade de ideias por praticamente todos os quadrantes do espetro político moderno. Tal como na França do final do século XVIII se gritava pela ‘Liberdade, Igualdade e Fraternidade’ – a Santíssima Trindade da esquerda revolucionária. Mas, e tal como na Revolução Francesa, hoje o desejo de ‘pluralismo’ e de ‘liberdade de expressão’, à esquerda e à direita, não passa de um desejo de hegemonia do pensamento mascarado quando se está do lado que não detém o poder.

Entretanto, a Disney voltou a colocar o programa do humorista na grelha de programação e Kimmel, num monólogo que deambulou entre um pedido de desculpas choroso e um (outro) ataque a Trump, voltou ao ar na terça-feira, com o Presidente dos EUA a não se inibir de expressar o seu descontentamento.

Mas são precisamente estas dinâmicas que caracterizam as sociedades livres. Quem está revestido de poder governativo pode criticar um programa televisivo – e até confessar que gostava de o ver cancelado – e quem é responsável pelo show tem a liberdade, se assim o entender a sua entidade empregadora (que também tem a liberdade de o despedir, desde que o faça sem coação estatal) de troçar de quem ocupa o lugar cimeiro da hierarquia executiva do país.

Por outras palavras, como escreveu o professor de jurisprudência americano Robert P. George, a grande lição a retirar deste episódio é que «[É] simplesmente inseguro confiar aos funcionários do governo o poder de, na prática, regulamentar a liberdade de expressão protegida pela Primeira Emenda». «É um poder», concluiu, «que pode ser facilmente abusado».

E se Kimmel aplaudia na primeira fila enquanto a última administração democrata desferia golpes à Primeira Emenda, é seguro concluir que o humorista foi, durante cerca de uma semana, filho de Saturno.