Política no banco de trás

E eu continuei: e se o senhor pertencer ao terço e não aos dois terços, que lhe parece? Tudo catita, não há limites, desde que seja a maioria é tudo democrático?

Quando me perguntam se prefiro táxi ou uber, respondo sempre que depende – é verdade, não é resposta para evitar responder. Por exemplo (e generalizando com base na minha estatística, apesar do perigo e da injustiça da generalização): se estiver num dia em que me apetece silêncio ou ser tratado por mister Rui, e em que não me importo de esperar minutos a fio que o carro dê duas voltas à cidade antes de me vir buscar, prefiro uber. Mas se estiver com vontade de uma corrida animada e chocalhada, na base da alternância entre acelerador e travão, ou se me apetecer um rádio aos berros, por exemplo com fado ou futebol, então um táxi vem muito a calhar (isto, claro, se houver algum a rodar por aí, fora das praças e dos lugares de paragem e espera). E para falar de política e aprender a debater na era do simplismo, da certeza e da frase definitiva, um táxi também pode ser melhor, na maior parte das vezes. Fiquem com este exemplo, muito recente. 

Disse eu ao motorista que era para ir para o lugar tal, e, armando-me em simpático e prestável, perguntei se ele sabia onde era. Recebi como resposta um seco: o senhor está a ver aqui algum indiano ao volante? Pronto, pronto, disse eu para mim mesmo, caladinho, olha pela janela e deixa-te ir, não te amofines. E assim ia, mudo e quedo, mas não chegou a durar um minuto e meio o silêncio, porque ele logo se justificou: não que eu tenha nada contra eles, atenção, mas que não sabem nada, não sabem, e nem falam português, e também não são muito amigos de água (julgo que esta era uma figura de estilo). E eu, a medo, soltei uma interjeição daquelas que não querem dizer nada: hum, hum! E ele, solto já na estrada e também na conversa: olhe que eu nem sou do tal partido, mas que o homem tem razão em muitas coisas, tem, disso não há dúvida. E eu, seguindo a mesma cartilha de não me comprometer e de não alimentar a arenga, limitei-me a balbuciar: pois, pois. E ele, prosseguindo: e não me venham dizer que não são democratas, são sim senhor, porque foram eleitos pelo povo, e além disso têm de acatar a Constituição, e só se pode alterá-la com dois terços dos votos. E foi quando eu arrisquei um esboço de debate, dizendo: mas olhe que se calhar não tarda muito e têm os tais dois terços, e nessa altura alteram, não é? Não demonizei, não sentenciei, não alterquei, muito menos levantei a voz ou usei tons duvidosos, limitei-me a perguntar de forma simples (questionar ajuda, sobretudo se se for simples e direto). 

Mas ele não desarmou, e respondeu-me: então, mas aí também são democratas, porque dois terços das pessoas votaram neles. E foi então que se me revolveram um bocado as entranhas e se me impuseram os conceitos (uns mais complexos do que outros, mas todos a puxar para a ideia de liberalismo – em sentido político, não económico – que, a qualificar o Estado, deve vir a seguir ao de Direito mas antes do Democrático, e que assenta nas ideias básicas de integridade e de liberdade individuais), e retorqui: Ah é, acha que sim? E então se esses dois terços resolverem silenciar, restringir, deter, ou, pior, aniquilar o outro terço? Está tudo bem, não, é a maioria? Não respondeu. E eu continuei: e se o senhor pertencer ao terço e não aos dois terços, que lhe parece? Tudo catita, não há limites, desde que seja a maioria é tudo democrático? Ficou um bocado atarantado, não me respondeu nada, ficou-se por um balbucio, e – incapaz de rebater a minha simplicidade (que quase sempre é o melhor remédio para o simplismo) – rapidamente mudou de assunto, e perguntou-me: olhe lá, essa rua que me disse não é ali para os lados do sítio tal? E eu, torcido, disse-lhe: acho que sim, não tenho a certeza, mas o senhor deve saber bem, não é indiano.