
Querida avó,
Esta semana celebramos o Dia da Música e o da Implantação da República. Deves estar felicíssima por o Museu Nacional da Música estar prestes a abrir na ala norte do Real Edifício de Mafra. Irá acolher um acervo de mais de um milhar de instrumentos musicais, a par de partituras, fonogramas, iconografia e documentação variada. Assim que abrir estaremos lá caídos.
Falando da República, Diário de um adolescente na Lisboa de 1910, é um dos teus livros que gosto sempre de recomendar. Devia ser de “leitura obrigatória”, para todos. Muitas vezes os mais novos não sabem o que aconteceu em 25 de abril de 1972, quanto mais em outubro de 1910.
Os meus avós falavam muito da importância da Implantação da República no nosso país.
Quando eram pequenos, ainda viviam sob a monarquia. Um tempo em que poucos tinham voz. O rei e a corte decidiam quase tudo, e o povo, na sua maioria, limitava-se a obedecer. A vida era dura para as famílias humildes: havia muita pobreza e só uma parte da população podia sonhar em viver, aprender a ler e a escrever. A maioria das decisões não pensava no bem de todos, mas sim no privilégio de alguns.
Os meus avós contavam-me que existiam famílias em que o pai era republicano, o avô monárquico e o vizinho pertencia à Carbonária. Facilmente se compreende a confusão que se vivia nesses dias de sobressalto, que vão dar ao 5 de outubro.
A República trouxe-nos também a ideia de que o poder não deve ser de uma única pessoa, mas sim de representantes escolhidos pelo povo, que podem ser substituídos se não cumprirem o seu dever.
É verdade que a República não resolveu todos os problemas. Ainda hoje temos desafios a enfrentar.
É necessário continuar a valorizar sempre a liberdade e a justiça. A República nasceu do desejo de dar voz ao povo. É responsabilidade de cada geração cuidar desse legado.
Na próxima semana temos eleições, autárquicas.
Bjs
Querido neto,
Esse livro, como sabes, deu-me uma grande trabalhadeira a escrever. Todos os factos históricos relatados, aconteceram na realidade. Foram meses de pesquisa intensa.
Falando de música, quando tenho tempo gosto muito de rever fotografias antigas. Umas fazem-me rir, outras nem tanto, mas gosto de recordar tudo.
Tenho uma fotografia, do tempo em que eu ainda trabalhava no Diário de Notícias, de que eu gosto muito e mostro muitas vezes aos meus amigos.
Estou sentada em amena cavaqueira ao lado de Carlo Bergonzi.
Carlo Bergonzi foi um dos maiores tenores italianos (morreu em 2014, aos 90 anos), que vinha várias vezes cantar a Lisboa, e eu ia sempre ter com ele para o entrevistar. O chefe de redação do “DN” era doido por ópera e eu também gostava muito (desde os meus 15 anos, quando fui ao S. Carlos ouvir a Maria Callas, na única vez em que veio a Portugal). Juntou-se a fome com a vontade de comer e eu nunca largava o Bergonzi enquanto ele cá estava.
Na fotografia de que falo ele está muito sorridente e a mostrar-me vários papéis. E as amigas a quem a mostro dizem sempre, «olha que giro, está a mostrar-te as partituras! Que bom!».
E eu dizia que sim, claro, pois que outra coisa havia de ser. Acho que as minhas amigas olhavam para mim com muito respeito, caramba!, eu até sabia ler partituras!
Pois. Mas, enfim, a vida custa a ganhar a todos, mesmo com muitas árias e óperas. E o principal sustento de Bergonzi vinha de alguns hotéis que ele tinha em Itália. E, na fotografia, aquela papelada não eram partituras, mas sim a publicidade a cada um dos hotéis, e ele a convencer-me a ficar num deles de cada vez que eu fosse a Itália.
O que nunca aconteceu porque, quando eu me deslocava ao estrangeiro, quem tratava de tudo eram as editoras de cada país para quem eu trabalhava. E elas nunca escolheram nenhum dos hotéis dele.
Sabe-se lá porquê.
Bjs