A Biblioteca Joanina. Dos dois lados do espelho

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A coleção da Universidade de Coimbra que abriga incunábulos, manuscritos raros e tratados científicos do século XV ao XVIII, entrou no domínio digital: mais de 30 mil volumes estão agora disponíveis na Joanina Digital, sob a tutela do Xeque Sultan bin Mohammed Al-Qasimi e com 8 milhões de euros do Emirado de Sharjah, convertendo o espaço que articulava a respiração dos séculos num sinuoso percurso entre estantes imensas num arquivo controlado.

A digitalização integral da Biblioteca Joanina inscreve-se na história das bibliotecas como episódio ambíguo, simultaneamente de salvação e de exílio. O espaço, barroco em arquitetura e em atmosfera, com tetos pintados e milhares de livros distribuídos em estantes imponentes, conserva ecos que atravessam séculos. Vive ainda sob os cuidados e a convivência das colónias de morcegos, guardiães involuntários que protegem os volumes ao consumir insetos que poderiam danificar o papel, enquanto mesas e móveis, ao fim de cada dia, são resguardados sob capas de couro, testemunhando o esforço diário de preservação. Sob o nome de Joanina Digital, o projeto visa criar um repositório global, em acesso livre, que restitui ao domínio público uma herança até aqui acessível apenas a quem se deslocasse ao coração da velha universidade.

A Universidade de Coimbra projeta, assim, tornar acessíveis até 2030 os cerca de trinta mil volumes que compõem o acervo, combinando restauro físico, digitalização de alta resolução e integração de ferramentas de inteligência artificial para indexação, tradução e análise textual, criando simultaneamente um espaço colaborativo em que estudiosos poderão prolongar o trabalho de descrição e anotação das obras. Os primeiros 300 volumes, equivalentes a 150 mil páginas, inauguram a catalogação sistemática de incunábulos de Direito Civil de 1495, tratados científicos, mapas desdobráveis de dois metros e raras edições ligadas à presença portuguesa no Golfo Pérsico – núcleo inicial escolhido pelo interesse pessoal do xeque Sultan bin Muhammad Al-Qasimi pela história luso-árabe.

Esta associação entre uma das mais antigas universidades da Europa e um dos sete emirados árabes transporta consigo uma complexa sedimentação de símbolos: o diálogo entre dois passados imperiais, o retorno de um olhar oriental sobre o arquivo ocidental, e a paradoxal promessa de uma universalidade digital num tempo em que a memória se dispersa em múltiplas superfícies. A Reitoria de Coimbra insiste no caráter humanista do gesto – a cultura como ponte, a preservação como ato de futuro -, mas a operação levanta também interrogações sobre o destino material do saber e sobre a forma como a tecnologia substitui a experiência do espaço pela ubiquidade da imagem. O que se abre ao leitor, nesta nova arquitetura imaterial, já não é o recinto de madeira, e que dispensa os morcegos, já não traz aos sentidos essa dimensão em que o livro comporta um peso muito próprio, exalando o seu odor de tempo, mas põe-nos diante de um campo de dados em expansão, uma biblioteca onde cada página é despojada do seu corpo. Ainda assim, a Joanina Digital introduz uma revolução de escala: a passagem do arquivo estático ao organismo de leitura infinita, capaz de reunir, sob o mesmo sistema, as coleções de medicina, astronomia, botânica e artes liberais da Universidade, e de se integrar no grande repositório europeu Europeana. Preserva-se assim não apenas o património, mas a própria ideia de biblioteca como forma viva de continuidade – uma constelação de signos que, mesmo desmaterializados, continuam a emitir, de algum modo, a sua antiga luz.

Não deixa de haver, no entanto, algo de inquietante neste gesto de conversão, obrigando-nos a avaliar o que se transfere e aquilo que se perde. As bibliotecas nasceram como corpos de sombra: órgãos que respiravam no escuro, metabolizando o tempo. Cada livro era uma célula de uma vastidão viva, de respirações sobrepostas, e entrar nelas era submeter-se a uma digestão lenta, como se o espaço inteiro nos mastigasse, fazendo-nos participar nesse metabolismo. Havia um desafio ali, que não era tanto o de possuir um saber antigo, mas o de ser contemplado por ele, perder-se nesse ancestral enredo.

A Biblioteca Joanina, agora digitalizada, parece prolongar-se numa sobrevida translúcida. Mas ao dissolver-se no ecrã, perde o corpo que a sustentava – a estratificação dos séculos. A biblioteca deixa de ser lugar e torna-se superfície. A promessa de acesso infinito substitui a experiência de errância. O labirinto reduz-se a um algoritmo. Tudo fica mais facilmente disponível, logo os obstáculos, as dificuldades que aquele espantoso mausoléu nos oferecia, são eludidas. Agora o leitor entra já guiado: cada busca é um trilho prévio, um corredor de transparências onde nada se interpõe. O tempo de leitura é amputado do seu erro. A biblioteca, que até aqui, era um desdobrar de possibilidades, um lugar do desvio e do acidente revelador, da frase que nos desviava das nossas intenções, converte-se num mapa limpo de hipóteses. Poder-se-ia dizer que esta transmutação reflete o modo como hoje entendemos a inteligência: instantânea, funcional, sem fricção. Mas uma biblioteca é um espaço que em si mesmo engendra fisicamente as possibilidades do pensamento, é um organismo que trabalha os vários níveis da linguagem, formulando um labirinto capaz de nos digerir.

As páginas digitalizadas são incorruptíveis, mas também imortais demais para se nos imporem. São a memória depois da memória, e talvez seja esse o sinal do tempo: já não procuramos algo que está para lá das nossas previsões, já não entramos na biblioteca para sermos absorvidos, mas para confirmar que o que existe é recuperável, arquivável, imediatamente disponível. O digital cumpre a velha fantasia da ordem total, mas anula a vertigem que nos convencia de que existe na leitura uma experiência de evolução inesperada dos nossos próprios desígnios.