Álvaro Laborinho Lúcio. Um juiz com alma de transgressor

1941-2025 A ética nunca foi nele uma snobeira, mas um modo de atenção e disponibilidade

Com ele, os títulos pomposos que se cumulam nessa forma de exaltação fria, toda aquela casca do jargão decorativo caía para o lado. Não eram valores ocos, nem atributos que se ficassem por essa pastosa retórica dos nossos tão solenes enunciados. Teve uma espécie de prova de fogo assim que chegou ao Ministério da Justiça, quando, numa entrevista, foi questionado se mantinha a frase «Um jovem que não transgride é um adulto malformado». Não recuou, e quando chegaram as críticas adiantou que «a transgressão é uma coisa normal no processo de aprendizagem social e de socialização». Não era uma defesa leviana do risco ou da desordem, mas a afirmação de que compreender a vida e a sociedade exige reconhecer os limites que se quebram e os processos de formação que atravessam cada indivíduo.

Nele, o rigor, a determinação dispunham um fio tenso, um desejo de articular com sentido cada elemento numa vasta composição em que justiça, Estado e cidadania se encontravam. Álvaro Laborinho Lúcio foi ministro da Justiça em 1990, deputado, procurador e inspetor do Ministério Público, procurador-geral adjunto, diretor da Escola de Polícia Judiciária e do Centro de Estudos Judiciários, juiz-conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de Justiça: cada cargo, em vez de reforçar um estatuto, eram passos num enredo decisório, uma prática em que se testava a integridade das leis e a densidade dos princípios. Antes da tutela da pasta da Justiça, foi secretário de Estado da Administração Judiciária. Foi ainda ministro da República para os Açores, em 2003, durante a Presidência de Jorge Sampaio. Nunca se acomodou à superfície das instituições; interrogava o que parecia intocado, confrontava procedimentos, rotinas, e nessa ação persistente, a função transformava-se em testemunho: a justiça era para ele corpo vivo, tensão ética, matéria que se molda e se exerce. Ao longo de toda a carreira, a marca de Laborinho Lúcio não residiu na visibilidade dos cargos, mas na capacidade de lhes imprimir sentido, de garantir que a palavra oficial não se esgotasse na formalidade, mas se convertesse em ação concreta, medida, ponderada, e ainda assim aberta às complexidades da realidade humana, às falhas e contradições que atravessam toda a vida pública.

Recentemente, ao ser chamado a integrar a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa, o seu nome era uma garantia de um compromisso sério em romper com as lógicas de encobrimento, enfrentando um dos mais sórdidos e enquistados enredos no seio da nossa sociedade. Sobre esta função, afirmou em entrevista ao podcast A Beleza das Pequenas Coisas, do Expresso: «O problema não é a sexualidade dos padres, mas os atos sexuais criminosos, a castidade e o pacto de ocultação entre fiéis e Igreja. Isto é, também os fiéis querem continuar a manter a castidade dos padres, porque os coloca num plano superior. Gostaria que a Igreja estivesse preparada para essa desocultação».

Em Laborinho Lúcio cada faceta era inseparável da outra, fosse metido nos caminhos exigentes da política, ou entre os recantos estimulantes da educação e da escola, ligando pensamento e ação, fosse enquanto escritor, um romancista que só veio a revelar-se aos 70 anos, cada traço consolidava o seu caráter, um espírito empenhado, culto, insaciável. Cresceu na Nazaré, entre escassez e disciplina familiar, os pés descalços de alguns, os calçados de outros, e uma infância marcada pelo impulso de escrever que se revelaria cedo, na redação escolar ‘A Vida na Selva’, título mais tarde aproveitado para o volume em que reuniu uma série de escritos breves, entre a autobiografia, a crónica e a ficção, partindo daquele primeiro exercício de uma memória que nunca se resignaria à passividade. Ali, já se inscrevia a tensão entre o bem e o mal, o conflito e a conciliação, a necessidade de observar, ouvir, perceber, antes de julgar. A escola, os professores, as críticas, as medalhas de matemática que nunca veio a dominar, tudo se amalgamou num terreno fértil onde cresceu uma obstinação pela clareza do pensamento e pela exatidão do raciocínio, sem concessões à complacência ou ao elogio fácil.

Foi no Fundão, ainda sob o peso de uma ditadura que acinzentava os dias, que se formou como magistrado, repetindo nas audiências, nos gabinetes de instrução, nas salas de julgamento, o mesmo processo de nascimento que conhecera na infância: escutar, ponderar, confrontar e decidir. Ali aprendeu que julgar é resistir à neutralidade formal, que o poder de decidir exige uma ética cultivada e uma proximidade com a vida, não apenas com a letra da lei. No Centro de Estudos Judiciários levou esta convicção até ao limite, recusando o magistrado técnico e frio, impondo à Casa de Cultura que presidia um rigor de pensamento e um gosto pela vida e pela literatura que a maioria dos juízes ignora.

A política, a passagem pelos Açores, a intervenção na Academia Internacional da Cultura Portuguesa, a reflexão sobre a açorianidade e a autonomia, não foram desvios, mas extensão natural da mesma busca: situar-se na história, interrogar a memória e a identidade, compreender o território e a língua como instrumentos de experiência e de criação. Cada escolha, cada livro, cada palestra, cada decisão judicial foi marcada por esse fio condutor, a consciência de que se nasce continuamente, que se cresce nas decisões e se mede pelo impacto das escolhas sobre os outros, sobre a verdade do mundo que se põe diante de nós e nos desafia constantemente.