‘Racismo sistémico’ abre guerra política em museu de Lisboa

Exposição sobre colonialismo no Museu de Etnologia apresenta opiniões como factos científicos e já motivou acusações de ‘extrema-esquerda’. Isabel Castro Henriques, responsável pela mostra, admite excessos nos conteúdos. Ministra da Cultura em silêncio.

A exposição Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário, no Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa, está no centro de uma controvérsia política e académica, sobretudo por causa de um texto que dá como verdade adquirida a existência de «racismo sistémico» em Portugal.

A querela abriu-se depois de o antropólogo José Pimentel Teixeira ter escrito no Facebook que a exposição padece de um «viés panfletário» e de «anacronismo» e constitui «agitação e propaganda» de extrema-esquerda.

Numa fase de acesos debates ideológicos que polarizaram a esquerda e a direita, a exposição ameaça incendiar ainda mais o debate público. E tanto assim é que o museu, a entidade pública que o tutela e o Ministério da Cultura se fecham em copas perante perguntas do Nascer do SOL.

Tais silêncios deixam isolada a comissária científica da exposição, a historiadora Isabel Castro Henriques, que nos disse reconhecer que certos conteúdos deveriam ter sido melhorados antes da apresentação ao público.

A exposição ocupa um piso do museu e consiste num conjunto de painéis com texto e imagem, acompanhados de 139 peças étnicas africanas e obras contemporâneas de Mónica de Miranda, entre outros. Foi uma encomenda da Comissão Comemorativa dos 50 anos do 25 de Abril. Os textos apresentados são resumos sem autoria individualmente atribuída, escritos por um largo grupo de académicos convidados pela comissária, como João Pina Cabral, Diogo Ramada Curto, Fernando Rosas, Cristina Nogueira da Silva, Inocência Mata ou Miguel Cardina. No catálogo da mostra os académicos assinam as suas investigações de forma desenvolvida.

Em alguns painéis apresentam-se como unânimes questões que continuam em aberto na historiografia. Fala-se em «política colonial fascista», apesar de a caracterização do salazarismo como fascista ainda hoje dividir os especialistas. E prescreve-se que «continua a ser necessário descolonizar os espaços, os corpos, as mentes, as ideias, a imaginação e todas as heranças deixadas pelo passado colonial e imperial».

Surgem exemplos de toponímia de Lisboa «elaborada durante o Estado Novo» para perpetuar ideias coloniais, mas o conjunto de ruas escolhidas inclui a Rua Cidade de Cacheu, em Benfica, que só foi assim designada em 1989.

O caso mais controverso é o de um texto que não está classificado como opinião: «Na sociedade portuguesa, que se caracteriza pela existência de um racismo sistémico, verifica-se a existência de correntes de negação do racismo, resultantes da persistência de mitos associados ao colonialismo português, como o luso-tropicalismo e a ideia de um ‘bom’ colonialismo português». Logo, «torna-se necessário proceder à alteração da forma de pensar o passado colonial para que, através da descolonização das mentes, se possa combater o racismo de forma mais eficaz».

‘Visões de extrema-esquerda’

A exposição teve início em 30 de outubro do ano passado e deveria fechar daqui a um mês, em 30 de novembro. No entanto vai prolongar-se até abril de 2026. Pouco depois da inauguração, José Pimentel Teixeira publicou as primeiras críticas no Facebook e depois compilou-as nos blogues Delito de Opinião e Nenhures.

Há dias juntou-se-lhe na apreciação negativa, via Facebook, o jornalista e crítico de arte Alexandre Pomar, para quem a exposição é uma «aberração» e uma «vergonha pós-colonial» com «textos miseráveis».

Ouvido agora pelo Nascer do SOL, José Pimentel Teixeira – antropólogo lisboeta que viveu e trabalhou em Moçambique entre 1997 e 2014 – sustenta que «o regime colonial era um regime de exploração e de ocupação racista», mas «não se pode aproveitar isso para uma luta ideológica atual». «Uma coisa é fazer a denúncia do colonialismo e da Guerra Colonial, outra coisa é fazer uma exposição que diz erradamente que a sociedade portuguesa pensa a realidade africana e as relações com os africanos da mesma maneira que pensava no período colonial».

A seu ver, «certas conceções daquele tempo persistem, mas nós não somos os nossos avós e não pensamos como eles». Em resumo, «Portugal é um país com racismo, mas não é um país racista», diz o antropólogo. Logo, a exposição «só desperta visões antagónicas ao tipo do discurso que pretende contrariar».

José Pimentel Teixeira entende que a mostra é «patética» por «motivos ideológicos e também por questões geracionais» e diz que nela estão representadas «visões dos partidos de extrema-esquerda, que estão incrustados nas ciências sociais» em Portugal. «São pessoas que ainda não saíram de 1974. Só pode ser isso. E que ficam rejuvenescidas quando as suas ideias são apoiadas por movimentos radicais, aquilo a que chamo o radicalismo pequeno-burguês de fachada identitária».

A comissária Isabel Castro Henriques – professora jubilada da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e precursora dos Estudos Africanos no nosso país, logo em 1974 – responde que a ideologia política dos académicos que convidou não foi critério. «Não perguntei às pessoas a que partido pertencem. Para mim, são historiadores e respeito as suas perspetivas». Mas admitiu que «na produção historiográfica portuguesa haverá um entendimento do colonialismo português que veicula determinada interpretação mais de esquerda ou de direita».

Limar ou refazer

Em conversa com o nosso jornal, a historiadora, que é também investigadora do Centro de Estudos Sobre África e Desenvolvimento do ISEG, desvalorizou os argumentos de José Pimentel Teixeira, acabando por conceder-lhe razão em alguns pontos.

Isabel Castro Henriques não identificou a autoria do mais controverso painel, que alega a existência de «racismo sistémico» em Portugal e a necessidade de «proceder à alteração da forma de pensar». Defendeu que «quem escreveu racismo sistémico pode considerar que o racismo hoje, apesar de não estar organizado num sistema político e num sistema económico, atravessa a sociedade e se reproduz». Porém admitiu excessos: «Admito que algumas partes poderiam ter sido limadas ou refeitas».

Instada a comentar a polémica, a ministra da Cultura, Margarida Balseiro Lopes, optou pelo silêncio. O mesmo fez a empresa pública Museus e Monumentos de Portugal, que tutela o Museu de Etnologia.

O diretor do museu, Gonçalo de Carvalho Amaro – nomeado para o cargo em janeiro deste ano, já depois do início da exposição – mostrou-se sem disponibilidade para uma conversa pessoal ou telefónica. Enviou uma curta declaração escrita a explicar que não comenta «críticas das redes sociais» e a defender que «os textos da exposição foram elaborados pelos principais especialistas sobre o colonialismo português em África».

O diretor referiu ainda que as reações à exposição têm sido «muito positivas» e que algumas críticas se referem «não ao conteúdo mas sim à museografia, nomeadamente ao excesso de textos e de informação». Surpreendentemente, Gonçalo de Carvalho Amaro não quis indicar o número de visitantes nem o custo da exposição, dizendo apenas que o orçamento do ano passado para programação no Museu de Etnologia foi de 42 mil euros.

Segundo Isabel Castro Henriques, a exposição tem tido um «número muito elevado» de visitantes. Uma versão reduzida, mas com os conteúdos integrais, já está a percorrer escolas e instituições de todo o país.

bruno.horta@nascerdosol.pt