Iliberalices

Uma sociedade liberal pressupõe determinados valores civilizacionais. Se não os afirmarmos e defendermos soçobraremos.

Considero-me liberal. Por formação, por convicção, pela experiência de uma vida cosmopolita, mas, sobretudo, por modéstia. Por sentir que cada um sabe melhor do que ninguém o que é melhor para si. Este credo liberal foi recentemente posto em cheque por dois acontecimentos.

Foi recentemente notícia que no final de 2024 cerca de dois em cada cinco dos residentes em Lisboa eram estrangeiros. Uma cifra gorda que, ainda assim, penso subestimar grosseiramente o número de estrangeiros existentes na cidade em cada momento, pois àquele número haverá que adicionar os imigrantes indocumentados e os turistas que desaguam em enxurradas na capital. Interrogo-me: Será que isto constitui um problema? E porque é que será um problema? E existirá uma resposta laissez-faire para ele?

É claro que a capacidade de atrair estrangeiros tem muitas vantagens: talento fresco, ideais e hábitos de trabalho novos, novas iniciativas e investimentos, mão de obra mais barata em setores relevantes (e que na capital são essencialmente serviços: turismo, restauração, comércio e domésticos). Contudo, a questão não é binária – ‘sim ou não’ –; o facto de ‘100’ ser ‘bom’ não significa que ‘1000’ seja ainda ‘melhor’: existe um ponto em que a quantidade transforma a qualidade. A partir de certo número (que não sei determinar, confesso) os benefícios de acolher mais estrangeiros são ultrapassados por pelos custos associados. E que custos são esses? Em primeiro lugar os societais: uma grande densidade de estrangeiros, sobretudo quando oriundos de regiões com matrizes culturais muito distantes das nossas e com uma grande dispersão de rendimentos, coloca problemas de integração e desafios à coesão social que se manifestam, por exemplo, na perceção de insegurança e na sensação de nós, os portugueses, nos sentirmos muitas vezes estranhos em certas zonas da nossa cidade. Por outro lado, existem custos materiais. A pressão de novos residentes, turistas (ou, na realidade meros investidores in absentia) exaura as infraestruturas públicas locais e agudiza problemas como o da escassez da habitação acessível. É claro que muitos empresários gostam e querem mais: pudera não são chamados a internalizar os custos externos da mão de obra barata; gostam também os políticos deslumbrados com a modernidade e com o todo o hype associado; e gostam, ainda, os construtores do luxo. Para quem, como eu, acha que já se ultrapassou o equilíbrio socialmente razoável não é fácil pensar em soluções liberais. Apenas me ocorrem cocktails de medidas (iliberais) como controlo da imigração, policiamento efetivo das condições de alojamento dos imigrantes, fim dos vistos gold, restrição ao investimento imobiliário por não residentes, congelamento do licenciamento de novas unidades hoteleiras, redução do AL ou aumento agressivo das taxas de atracação no porto de Lisboa. Os meus concidadãos lisboetas não pensam assim, aparentemente.

O segundo evento foi a aprovação da chamada ‘lei da burqa’. Se fosse deputado teria votado a favor. Como assim? Como é que alguém que se diz liberal votaria a favor de uma lei que dita aos outros o que devem usar? Onde estar o ‘ser liberal por modéstia’? As justificações para um tal voto por um liberal foram magistralmente apresentadas por António Barreto (A burqa e o passaporte, Público, 25-10-25). Enfatizaria, apenas, que o usar burqa não é a escolha de uma peça de vestuário. É o arremessar à nossa cara valores que são incompatíveis com os da nossa sociedade aberta e liberal e uma recusa a integrar-se nela. Uma afirmação dos valores que no Afeganistão impedem as jovens de trabalhar e de ir à escola. Não é possível condenar isso lá e defendê-lo cá. Uma sociedade liberal pressupõe determinados valores civilizacionais. Se não os afirmarmos e defendermos soçobraremos.

Professor universitário