A falsa elite da bolha

Dois ou três esquissos de cenas que podiam ter saído da genial caneta do José Vilhena, esse atento cronista de uma certa pequena burguesia lisboeta

Primeiro esquisso: três comparsas de comédia reúnem-se para montar uma armadilha burlesca a um convidado. Um deles julga-se a esfinge, os outros dois são o que são: dois losers políticos. Um, num país onde os socialistas se desdobram em dinastias, sendo filho de um dos mais ilustres membros da confraria, não conseguiu passar de presidente de junta de freguesia. O outro conseguiu a façanha de desincrustar do Parlamento um partido que sobreviveu ao PREC, à covid, às sete pragas do Egito e, mais difícil ainda, a Freitas do Amaral e a Assunção Cristas. Quem era o convidado? Um político que em meia dúzia de anos trouxe um partido do zero até ser o segundo maior do país. A coisa acabou mal para os comediantes. Como seria de esperar. E só não acaba pior porque as televisões vivem direta ou indiretamente do Estado pelo que se podem dar ao luxo de ver transformados programas políticos em sitcoms involuntárias sem redespedir, na hora, os já despedidos pelos eleitores.

Segundo esquisso: Garcia Pereira, uma assombração foragida do musgo quase secular do seu jazigo político algures no Alto de S. João, resolve aparecer ao meio-dia, em plena luz do sol, para assustar os vivos, curar os doentes e vingar os mortos. O autointitulado ‘grande dirigente e educador da classe operária’, é um profeta da ditadura do proletariado para quem Estaline não terá seguramente passado de um burguês compassivo e morno, um democrata que berrava ao vivo e a cores em cartazes MORTE AOS TRAIDORES (todos traidores, desde os defensores do Euro até ao ex-cúmplice e camarada Arnaldo de Matos). Pois não é que esse democrata, esse auto-sonhado executor de traidores, não foi apresentar queixa do Chega ao MP por discurso de ódio? Dizia o ‘traidor’ Arnaldo de Matos referindo-se ao Dr. Garcia Pereira: «Isto é tudo um p….’.

Terceiro esquisso, este simbólico e sem sair do universo de José Vilhena, antes pegando numa trilogia de que ele foi o impiedoso autor: O Filho da Mãe, O Filho da Mãe Volta a Atacar e a Vingança do Filho da Mãe. É a história, aqui muito resumida, de um imaginado Comendador Justino dos Anjos Freitas, personagem que abandonara a aldeia nativa para tentar a sorte na capital. Levava no bolso uma carta de recomendação para um compadre de um primo lá da terra, porteiro num banco da baixa. Com a ajuda do porteiro arranja um emprego no banco. Passando rasteiras à esquerda e à direita, pulhice aqui desonestidade ali, vai subindo nos andares do edifício e na hierarquia da casa até chegar à comenda e à presidência do conselho de administração, na bolha do último andar do prédio. Na bolha. Este comendador Justino dos Anjos Freitas é uma metáfora. Está por todo o lado, na Universidade, na Comunicação Social, na Cultura, na Política. Nos restaurantes de Sushi e nas exposições woke da Casa de Serralves. Sem perceber que aquilo já é só para uma ‘middle class pretensiosa’ que ele despreza sem perceber que faz parte dela. E a beber vinho de pacote vendido em garrafas de Barca Velha em restaurantes manhosos pseudo-cool enquanto vitupera contra o ‘grunho do Ventura’ e os ‘javardos’ do Chega. No tempo em que Vilhena o criou, Justino era uma raridade. Hoje é um tipo de gente, a falsa elite da bolha.

Vice-presidente da Assembleia da República