E o golo pediu: ‘Marca-me Pelé!’

No dia 19 de Outubro de 1969 Edson Arantes do Nascimento marcou o milésimo golo dos seus 1283. Tinha 29 anos. Mil: a marca mítica da demanda de Cristiano Ronaldo que já vai nos 40. Será certamente a altura para conhecer uma história como esta: cheia de episódios, de prosas e de poemas

1 de outubro de 1977. Giants Stadium. Também lhe chamavam The Meadowlands. East Rutherford: o subúrbio dos subúrbios. Subúrbio de Nova Jérsia, subúrbio de Nova Iorque. Ainda assim. Dizem que estavam lá 75 mil pessoas. Quem as contou? Eu não fui. Não sei fazer contas. Talvez estivessem mais, talvez estivessem menos, pouco importa. Todos viram ao vivo o último golo de Edson Arantes do Nascimento, por extenso Pelé como escrevia Nelson Rodrigues. O golo número 1283. Em 1363 jogos. Vá lá morrer longe! Porradaria de golos, os do crioulo. 

Descrevem os jornais que foi de livre. A televisão mostrou em direto num programa especial de World Wide Sports. Mohammad Ali não perdeu pitada de olhos postos no relvado. A trinta metros da baliza. Aos 43 minutos. Quase à beira do intervalo, portanto. Pelé baixou a cabeça, começou a correr e chutou em arco. Um golo incogitável. Porquê?, perguntará o estimado leitor. Com razão, com toda a razão. Porque foi contra o Santos, o clube da sua vida, o clube da sua despedida. Estava no New York Cosmos. Jogou meia-parte por cada um dos lados. O resultado ficou 2-1 para os norte-americanos. Com a camisola branca não foi capaz de empatar. Provavelmente nem se importou. Um repórter inspirado relatou essa noite de chuva. Deu à crónica o título: «Even the sky was crying».

Jairo do Nascimento: até parece que eram primos ou o diabo a quatro. Nasceu em Joinville, Santa Catarina, no dia 23 de outubro de 1946. Exatamente seis anos depois de Pelé. Não acreditam? Estou-me nas tintas. Eu também não acreditei a fui ver: confirmei o 23. Já o mês é um berbicacho: há outubro, novembro e dezembro. Fiquei com o outubro: dá mais jeito para a história. Chamaram-lhe Pantera Negra. Ficava-lhe bem. Passou pelo Santos como cão em vinha vindimada, que me desculpe a pantera. Doze anos depois acabou a carreira no Atlético de Três Corações. Isso! A cidade onde veio ao mundo o filho de Dona Celeste Arantes e de João Ramos do Nascimento, por extenso Dondinho. Jairo podia ter feito cartões de visita com o nome em cima e a profissão em baixo: «O goleiro que sofreu o último golo de Pelé». Não consta que tal acontecesse. Mas não seria inédito. Oswaldo Rodrigues Torres Zaluar teve o descaramento divino de os imprimir. Diziam: «Goleiro que sofreu o 1º golo de Pelé – 07/09/56». Vinte e um anos antes de The Meadowlands sofrera um golo de um fedelho adolescente a quem a imprensa dera o nome de Gasolina. Foi no Estádio Américo Guazelli, Santo André, contra o Corinthians de Santo André. Mais um subúrbio, agora de São Paulo. Zaluar era um tipo castiço. Gorducho, bem-disposto. Admito que tenha até ficado contente por Pelé lhe ter marcado aquele golo tão importante que na altura não tinha importância nenhuma. Já Edgardo Norberto Andrada, argentino de Rosário, encarou sofrer o milésimo golo de Pelé de forma filosófica: «Se tivesse defendido ninguém se lembrava. Sendo golo entrei para a história do futebol». Foi de penalti. 19 de novembro de 1969. Estádio Mário Filho, por extenso Maracanã. 78 minutos de jogo. O mundo inteiro estava à espera. Ansioso.

Foram estes os três guarda-redes mais importantes da história de Pelé. Que também foi ele próprio um excelente guarda-redes. Tranquilos. Deve haver aqui espaço para falar sobre o assunto.

A Arábia da América

27 de agosto de 1977. Mais uma vez Giants Stadium, que nesse ano passara a ser o estádio do New York Cosmos depois de ter abandonado o Yankee Stadium no Bronx. Cosmos, 4 – Rochester Lancers, 1. Pelé marcara o seu golo n.º 1282. Dez dias antes marcara o golo 1281 ao Forth Lauderdale. Não se preocupem. Não vou fazer uma contagem decrescente como em Houston, Texas. É só para enquadrar a coisa. Ou seja, a Edson (que era para ser Edison, como Thomas, mas no cartório caiu-lhe o i) os Estados Unidos também lhe deram jeito para aumentar a contabilidade, tal como a Arábia Saudita está a dar jeito a Cristiano Ronaldo para aumentar a dele na demanda pelos mil golos. Mas não caiu no Cosmos vindo do céu, mesmo que para Pelé e para o Cosmos o céu fosse o limite. O interesse do clube alimentado a milhões pela Warner Comunications já vinha de 1971. E até 1974 o crioulo foi resistindo. Resistindo até à Europa e à Itália. Só que, de repente, olhou para o cofre e estava vazio. Tinha jeito para a bola como ninguém mas era um desastre nos negócios. «Devia uns milhões e queria pagar as minhas dívidas. Sabia que era através do futebol a melhor maneira de o fazer». Recebeu cinco milhões de dólares por três anos de contrato. Um balúrdio para a época. O atleta mais bem  pago do mundo. Cabia-lhe ser jogador e embaixador do futebol dos Estados Unidos. O próprio Presidente Gerald Ford recebeu-o na Casa Branca para o incumbir da missão. 

Repito: a América era a Arábia de hoje. E o Cosmos (diminutivo de Cosmopolitans) o rei da América. Em pouco tempo, esse clube fundado por dois irmãos turcos, Nesuhi e Ameht Ertegün, proprietários da Atlantic Records, depois comprada pela Warner, açambarcou Franz Beckembauer, Johan Cruyff, Giorgio Chinaglia, Carlos Alberto Torres, Marinho Chagas e o português Arsénio Rodrigues Jardim. Não sabem quem é? Eu ajudo. Chamavam-lhe simplesmente Seninho. O sonho brasileiro do Cosmos era de tal ordem que o seu primeiro equipamento era amarelo e azul, como o da Canarinha. E a fama infiltrou-se de tal forma na pele dos Cosmopolitans que até Andy Wahrol, o homem das latas de sopa de tomate Campbell’s, pintou alguns dos seus quadros policromos com as caras de Pelé, de Beckenbauer, Chinaglia (que chegou a ser seu amigo) e inevitavelmente Pelé. 

No total da tesouraria estado-unidense Pelé somou 66 golos em 64 jogos. Entre 1975 e 1977, quando abandonou o futebol aos 37 anos – Ronaldo já bateu esse recorde. Uma gota de chuva por entre os tais 1283, mas ainda assim uma gota. Como na história do ratinho que ia todos os dias fazer chichi ao mar. Ao voltar para a toca pensava consolado: «Sempre contribuí com qualquer coisinha». 

No Cosmos, Pelé nunca jogou à baliza, ele que era um dos guarda-redes suplentes do Santos. E tão bom que Lalá, um dos goleiros que com ele jogou, afirmava convicto: «Em condições normais Pelé era titular. Melhor que nós todos!» Uma vez, numa digressão a África, num jogo contra a selecção do Congo, o promotor da viagem pediu-lhe que, para divertimento do povo, jogasse meia-parte à baliza. Pelé fez-lhe a vontade. Embora depois se tivesse queixado que isso o atrasou na corrida para o golo mil. Andava pelos 998. Não jogou como keeper no Cosmos, mas a América viu-o defender como um danado. Dia 19 de junho de 1973. Outra digressão do Santos. Jogo frente ao Baltimore Bays no Memorial Stadium de Baltimore, como está bem de ver. Vitória por 4-0. Aos 13 minutos Pelé marcou um golo olímpico – de canto direto, nada de confusões (o nome vem de 1924 quando o argentino Cesáreo Onzari fez um assim contra o Uruguai, campeão olímpico; não é olímpico quem quer). Depois marcou outro, mais normal, se é que em Pelé havia alguma coisa de normal. Eusébio marcou outros dois. Não o Eusébio da Silva Ferreira, de Mafalala, de Portugal e do Benfica. Eusébio de Brito. Aos 36 minutos da segunda parte, o guarda-redes Cláudio Oliveira lesionou-se. O suplente estava em campo: Edson Arantes do Nascimento. Saiu lá da frente e encaixou-se entre os postes. Eufemismo! Tomou conta da própria grande-área como um gato negro e elástico. A rapaziada de Baltimore convenceu-se que surgira aí a hipótese de marcar finalmente um golo. Qual quê. Pelé multiplicou-se. A baliza pareceu mais segura do que nunca até então.

989, 993… 998, 999…

Recuemos 283 golos. Não vou aqui dar para o peditório de que o golo mil de Pelé não foi o mil e sim o novecentos e noventa e nove ou o mil e um. A discussão arrastou-se durante anos a fio. Apresentaram-se argumentos, provas e contra-provas, testemunhas a favor de uma tese e de outra como nos filmes de Perry Mason. Para mim, fica assim: «I rest my case, your honour!» E vou para o dia 19 de novembro de 1969, cumprem-se agora 56 anos. Rio de Janeiro, Maracanã, 100 mil pessoas (há quem diga que foram menos mas eu não andei a contá-las), Vasco da Gama-Santos. Fotógrafos aos magotes. E radialistas de microfones na mão à beirinha do relvado. O momento que ninguém queria perder. Um mês antes, dia 15 de outubro, Pelé tinha apenas (apenas é giro!) 989 golos. Ainda faltavam onze. De repente, no Pacaembu, contra a Portuguesa, na vitória do Santos por 6-2, marcou quatro. Estava a sete do tal golo que foi poema. A seguir, no Paraná, perante o Coritiba, marcou dois no triunfo por 3-1. Cinco. Agora sim, já parece Houston. «This is Major Tom to ground control…» cantaria David Bowie. Dois jogos a zero: Fluminense, Maracanã, 0-0; América, Parque Antártica, 1-1 (golo de Edu). Maracanã outra vez: Flamengo, 4-1 (um golo de Pelé). Pacaembu, Corinthians, 1-4 (não marcou). Os mil pendurados por quatro. No Morumbi, frente ao São Paulo ficou em branco: 1-1 (golo de Rildo). Depois dois nos 4-0 ao Santinha, o Santa Cruz Futebol Clube, na Ilha do Retiro. Quase, quase. 

14 de novembro de 1969. João Pessoa, Estádio Olímpico José Américo de Almeida, Estado da Paraíba. Jogo amigável entre Santos e Botafogo da Paraíba. Palavra a Pelé na sua biografia, Pelé Minha Vida em Imagens: «Mal o jogo começou o Santos fez dois a zero com grande facilidade e quando eu já me perguntava se aquilo não seria de propósito o árbitro marcou um penâlti a nosso favor. A multidão explodiu em euforia e começou gritando – ‘Pelé! Pelé! Pelé!’. Mas eu não era o batedor de penâltis do time. A pressão era enorme para que eu batesse. Os meus companheiros disseram que se eu não o fizesse o público não nos deixaria sair daquele estádio». Marcou mesmo e foi golo. Ainda faltavam 24 minutos para o fim do encontro. Ninguém acreditaria que Pelé não fizesse pelo menos mais um – o tal. Até porque o árbitro parecia ser um bom amigo do Santos e de uns tantos milhares de espectadores sedentos de viver a História em tempo real. Só que, subitamente, o guarda-redes Jair caiu no chão revolvendo-se com dores. O próprio contou: «Assim que Pelé marcou o golo 999 fui ‘obrigado a me contundir’ e ele foi para o meu lugar porque premeditadamente não havia outro goleiro de reserva. O esquema foi idealizado pelo director Julio Mazzei porque ninguém no Santos queria que o milésimo saísse na Paraíba e sim no Maracanã». O milésimo era definitivamente premiado. 

Na baliza Pelé não fez mais golos. Mas ainda havia outro jogo antes do do Maracanã, com o Vasco. Em Salvador, contra o Bahia. O crioulo estava-se nas tintas para o Maracanã e para o Vasco. «Queria livrar-me daquilo do milésimo o mais depressa possível. Chutei uma bola na trave. Na segunda parte recebi uma bola junto à marca de penâlti, dei uma volta, passei um jogador pela direita, rematei, o goleiro não conseguiu pegar, mas vindo não sei de onde um zagueiro sacudiu a bola da linha de golo. E de repente o próprio público começou a vaiá-lo. Era uma coisa surreal!». O zagueiro chamava-se Nildon Carlos Braga Veloso, era conhecido por Nildo Birro-Doido e acabou a vida como caixa de supermercado. Ficou sendo o homem-que-evitou-o-milésimo-golo-de-Pelé. Também dava um belo cartão de visita. 

A partir daí a história passou a lenda.

As malditas criancinhas

Aos 33 minutos da segunda parte do (finalmente!) Vasco da Gama-Santos, o defesa Renê Carlos da Silva fez falta sobre Pelé na área do Vasco. O árbitro Manoel Amaro de Lima não teve dúvidas: assinalou penalti. Renê viu-se durante anos massacrado pela imprensa e por curiosos. Todos queriam saber a sua opinião sobre o lance. A resposta era repetitiva: «Quem derrubou o Pelé não fui eu! Foi o Fernando!». Já o Fernando Silva, tinha outra opinião: «Eu não fiz falta nenhuma! Pelé tropeçou na minha perna!». Eis gente que não queria ter nada que ver com o milésimo golo e Edson Arantes do Nascimento. Mas eram uma minoria: de dois.

O jogo estava empatado: 1-1. 

Pelé colocou a bola no circulozinho branco. Tomou pouco balanço, fez a paradinha que aprendera com o grande Didi, e tocou a bola para o lado direito do guarda-redes argentino Andrada que se atirou bem mas não chegou. Mil! Eram 23 horas e 17 minutos no Brasil.

O mundo parou. OK, seja, é exagero. Pelo menos o Brasil. E a partida parecia ter acabado de vez: durante vinte minutos a bola não voltou a rolar. Ficou por um bocado nas mãos de Pelé que a foi buscar ao fundo da baliza onde se ajoelhou e rezou. Uma camisola do Vasco da Gama com o nº 1000 apareceu das bancadas e foi entregue ao herói que pronunciou um discurso um bocado incoerente sobre criancinhas. Pelo menos era o que parecia. «Pensem no Natal. Pensem nas criancinhas pobres, necessitadas de uma roupa usada e de um prato de comida. Por amor de Deus, o povo brasileiro não pode perder mais crianças». Depois, na biografia, Pelé explicou-se melhor: «Na véspera saí um pouco mais cedo do treino e vi uns garotos a roubar um carro que estava estacionado perto do meu. Disseram-me para não me preocupar porque só roubavam carros com a placa de São Paulo e não de Santos. Disse-lhes que não roubavam carro de placa nenhuma e contei o episódio a um colega do time. Falámos sobre a educação das crianças no Brasil. Aí, quando marquei o golo mil, foi isso que me veio à cabeça». O que virá à cabeça de Ronaldo quando chegar a sua vez? Ele que responda. Mas se calhar o melhor é não falar de criancinhas. Digo eu. Porque houve um mundo de intelectuais que caíram sobre Pelé acusando-o de ser um aproveitador barato da miséria brasileira. A tal ponto que ele próprio acabaria por revelar já depois do fim da carreira: «Se eu soubesse que dedicar o golo às criancinhas ia dar tamanho barulho tinha ficado quieto. Tinha-o dedicado à minha mãe que iria adorar». O mal estava feito. E ficou.

Muito se escreveu sobre o milésimo golo de Pelé. Que digo eu? Tudo se escreveu sobre o milésimo golo de Pelé. Mas há jornalistas e jornalistas, cronistas e cronistas, poetas e poetas. Pelé merece os melhores dos melhores. Como Carlos Drummond de Andrade que nesse dia 19 de novembro escreveu no Jornal do Brasil: «O difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols como Pelé. É fazer um gol como Pelé. (…) O Rei chega ao milésimo gol (sem pressa, até se permitindo o charme de rectificar para menos a contagem) por uma fatalidade à margem do seu saber técnico e artístico. Na realidade está lavrando sempre o mesmo tento perfeito, pois outros tentos menos apurados não são da sua competência. Sabe apenas fazer o máximo, e quando deixa de destacar-se no campo é porque até ele tem instantes de não-Pelé como os não-Pelés que somos todos. (…) Os mil gols de Pelé são um só, multiplicado e sempre novo, único em sua exemplaridade. Não sei se havemos de exaltar Pelé por haver conseguido tanto, ou se antes o nosso louvor deve ser dirigido ao gol em si, que se deixou fazer por Pelé, recusando-se a tantos outros. Ou ao gênio do gol que se encarnou em Pelé por uma dessas misteriosas escolhas que a genética ainda não conseguiu explicar, pois a ciência, felizmente, ainda não explicou tudo neste mundo». Magnífico, claro! É Drummond!

O golo que foi poema

Dois dias mais tarde, n’O Globo, era a vez de Nelson Rodrigues, o príncipe da crónica, entrar pelo milésimo golo adentro: «Amigos, a cidade tem 5 milhões de habitantes, talvez mais. Pois esses 5 milhões deviam estar presentes, anteontem, no Estádio Mário Filho para ver o milésimo gol de Pelé. 

Dirão os idiotas da objetividade que o ex-Maracanã comporta, no máximo, 250 mil pessoas. Mas os que não pudessem entrar ficariam do lado de fora, atracados ao radinho de pilha e chupando laranjas. O que acho incrível e, sobretudo, indesculpável, é que alguém, vivo ou morto, pudesse ficar indiferente à mais linda festa do futebol brasileiro em todos os tempos. Sim, os vivos deviam sair de suas casas e os mortos de suas tumbas. 

Viva a mulher bonita, que não faltou. Só as feias não apareceram. Não sei se sabem que o sublime crioulo fascina a mulher bonita. As mais lindas garotas estavam lá. (…) Mas no caso de Pelé, foi um só. Só ele marcou os mil gols. Nunca se viu nada parecido no mundo. É uma glória maravilhosamente individual, maravilhosamente solitária. Muitos lamentam que tenha sido de pênalti. Meu Deus do céu, e daí? Na sua penetração fulminante, tinha batido toda a defesa adversária. Ia entrar com bola e tudo. E sofreu o pênalti. (…) O que íamos assistir já era História e já era Lenda. Imaginem alguém que fosse testemunha de Waterloo, ou da morte de César, ou sei lá. No Maracanã, fez-se um silêncio ensurdecedor que toda acidade ouviu. No instante do chute, a coxa de Pelé tornou-se plástica, elástica, vital, como a anca de cavalo.

Mas havia alguém contracenando com ele no quinto ato da batalha. Era o formidável goleiro argentino Andrada. Em qualquer hipótese, ele ia se tornar uma figura histórica: — defendendo ou não. E quando Pelé estourou as redes, o Estádio Mário Filho voou pelos ares. Desde Pero Vaz de Caminha, nenhum brasileiro recebera apoteose tamanha. De repente, como patrícios do guerreiro, cada um de nós sentiu-se um pouco co-autor do feito. Pelé voou, arremessou-se dentro do gol. Agarrou e beijou a bola. E chorava, o divino crioulo. Cem mil pessoas, de pé, aplaudiam como na ópera. Depois, assistimos à volta olímpica. Pelé com a camisa do Vasco, Naquele momento éramos todos brasileiros como nunca, apaixonadamente brasileiros».

Talvez Ronaldo não tenha a sorte de alguém escrever um dia tão bem e tão bonito sobre o seu milésimo golo que chegará um dia, tão certo como inevitável. Ou talvez não haja quem o faça com a mesma meiguice que Armando Nogueira, o homem que um dia disse que se Pelé não tivesse nascido gente teria nascido bola, no Jornal do Brasil: «Abençoado é o pênalti que não castiga mas gratifica: quando Pelé, no fundo da rede, beijou mil vezes a bola do seu gol-símbolo, o estádio viveu um momento de libertação. Éramos, ali, uma doce multidão de crianças reencontrando a bola da nossa infância». Ou que um dos seus companheiros de equipa se lembre desse momento como Coutinho, o menino das tabelinhas com Pelé: «Toda a vez que repetem o milésimo gol de Pelé mais eu tenho medo que o Andrada acabe defendendo aquele pênalti». Ou pode ser que seja assaltado pelo Duende de Llorca e rabisque na véspera de o marcar algo deste género: «O que vale é o que fiz/O que vale, o que já fiz/É ter feito a obra/E o tempo que já passou/É ter feito o que era meu/O que fiz agora/É ter feito o que era Seu/E o que foi Seu». Premonitório? Sim. Foi escrito pelo próprio Pelé no fim da noite de 18 de novembro. Estava com toda a equipa no Hotel Glória, de frente para baía da Guanabara, aquela que Gauguin amou, que Cole Porter adorou e o antropólogo Claude Lévy-Strauss detestou. Quis perceber dentro de ele mesmo que o milésimo golo era apenas mais uma etapa da sua vida. 

Mil golos são mil golos e mil golos e mil golos. O lugar onde se encontram os que crêem no infinito e correm para os seus braços. Romário diz que fez mil e dois golos, mas só ele é que o garante. A vida mais antiga conta que Arthur Friedenreich, o Pó-de-Arroz, chegou aos 1329 e que Josef Bican, o austríaco e também checo, somou 1200. Vá lá saber-se. Confirma-se apenas que foram únicos e dificilmente repetíveis. Confesso que gostaria de ver ao vivo o último golo de Ronaldo, que conheci ainda tão menino, mas já não é para malta da minha idade. Ele, como Pelé, é dono da imodéstia absoluta. Todos tremeram diante deles. E o mundo esteve de acordo.