Striptease negocial

O segundo mandato de Trump trouxe às relações internacionais imprevisibilidade, instabilidade e doses generosas de diplomacia do megafone

As mudanças de prioridades, de agendas e de calendários são agora frequentes e caprichosas, as alianças tradicionais foram substituídas por um mercantilismo de curto prazo, guiado por transacções que favorecem, nominalmente, os EUA e, mais concretamente, alguns dos seus agentes económicos. A diplomacia trumpiana dispensa os diplomatas, substituídos pelos amigos e pelos membros da família. Pouco a pouco, as chancelarias foram assimilando esta nova realidade e gerindo, a golpes de lisonja, prendas e aquisições de “made in America”, os novos representantes do império americano.

A última semana trouxe, a propósito do processo de paz para a Ucrânia, mais uma novidade: a divulgação dos decálogos negociais dos EUA, a dúvida sobre a sua autoria, a rápida sucessão de contrapropostas públicas e a gravação de uma antológica conversa telefónica entre o diplomata malgré lui (Steve Witkoff) e Yuri Ushakov (um profissional ao serviço do MNE russo desde 1970). A maioria dos pundits imputa a Moscovo a divulgação da sinistra lista de 28 pontos do plano Trump para a paz na Ucrânia, carinhosamente conhecida como a lista de prendas de Natal de Putin. Já a divulgação do telefonema entre Witkoff e Ushakov não parece servir os interesses de Moscovo. Não tendo acesso à garganta funda de serviço, acredito num rebate de consciência por parte de um “bom americano” (um funcionário consciencioso, à semelhança do que promoveu a divulgação dos detalhes do arrombamento do edifício Watergate) ou, mais dificilmente, à competência de um serviço de informações de um Estado europeu.

O recurso às negociações fora da discrição de uma sala (isto é ao vivo e a cores) é sempre perigoso e não tem uma grande tradição entre Estados. Já o emprego de fugas de informação como forma de condicionar e manipular a contraparte tem uma história antiga e cabeluda, remontando aos 12 espiões enviados por Moisés a Canaã. Quem já tenha participado em negociações com a Federação Russa conhece o rigor e a eficácia do trabalho de equipa entre diplomatas, espiões e jusinternacionalistas. Também por esta razão, a proposta inicial de 28 pontos pelos EUA faz sorrir pela má redacção e uso contraditório de conceitos de direito internacional público (serve de exemplo a estranha mistura, na mesma frase da proposta inicial dos EUA, entre a ocupação de facto de território ucraniano pelas forças russas e o reconhecimento da soberania russa sobre esse mesmo território). Os 28 pontos, reduzidos pelos europeus a 19, recauchutados entretanto por Washington em torno de um outro qualquer número, estão muito longe de se traduzirem num acordo de paz ou até num acordo de cessar fogo (que Moscovo não aceita como preliminar, exigindo um acordo prévio em todas as matérias). Há muito para aperfeiçoar e bastante para negociar, entre europeus e americanos.

Para atrair os russos ao acordo há apenas dois temas, identificados nos 28 pontos originais: uma nova arquitectura de segurança na Europa e o regresso da Rússia aos mercados mundiais. O primeiro objectivo é o que deu origem à invasão da Ucrânia. Putin considera, não sem razão, que a guerra fria terminou sem que a Rússia tenha assegurado um estatuto jurídico internacional para o seu império. Garantir que a expansão da NATO não prossegue para leste é uma questão existencial para Moscovo, a que Trump não se opõe.

Já a abertura económica da Rússia, com uma preferência imperial a ser concedida aos EUA, é a prioridade negocial de Washington.

Um acordo de paz é, para Trump e Putin, uma mera consequência destes dois objectivos.