Valeu a Pena

É respeitada porque nunca fugiu da essência do fado: aquela mistura de tristeza e verdade, de vida vivida e sentida. E é por isso que, quando se fala de fado, o nome dela vem sempre à baila.

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Querida avó,

Já te falei algumas vezes do meu avô Alberto e do gosto que ele tinha pelo fado. Recordo-me perfeitamente duma tarde, como tantas outras, depois da escola, de estarmos sentados à mesa da cozinha, o cheiro do café (feito na hora) a misturar-se com a luz suave que entrava pela janela. Curioso, como sempre, perguntei quem era aquela senhora que o avô ouvia tantas vezes no rádio, com uma voz cheia de emoção. O avô sorriu e começou a contar-me a história de Maria da Fé.

Que tinha nascido no Porto e desde pequenina que trazia o fado na alma. Começou a cantar muito novinha, aos 9 anos já se atrevia a cantarolar os primeiros fados, imagina tu. Aos 12 anos participou num concurso de fado e ganhou! Foi aí que começou o seu caminho – e que caminho bonito.

Depois veio para Lisboa, que é o coração do fado, e por cá cresceu como artista. Passou por casas de fado conhecidas, até que um dia, em 1975, criou a sua própria casa: o Senhor Vinho, em Campo de Ourique. Essa casa tornou-se uma verdadeira escola de fado, um sítio de respeito onde se canta com alma e onde muitos jovens fadistas começaram as suas carreiras.

No Senhor Vinho passaram nomes que hoje são grandes, como a Ana Moura, o Camané, o Aldina Duarte, o Ricardo Ribeiro…

O avô Alberto sempre me disse que a Maria da Fé iria ser uma das grandes vozes do nosso fado! Pois desde cedo demonstrou ser uma mulher de garra, de sentimento, e com uma vida dedicada a essa canção tão portuguesa que nasce da alma.

Adorava quando ouvíamos fados como: “Cantarei até que a voz me doa”, que é quase o retrato da sua alma fadista; “Fado Maria da Fé”, “Valeu a Pena”, entre tantos outros.

Cada um deles é como uma janela para o seu coração, e para o nosso também.

Infelizmente, o Senhor Vinho é uma casa onde o avô Alberto nunca entrou!

Sei que és muito amiga da Maria da Fé. Espero que numa próxima vinda a Lisboa possamos lá ir jantar.

Bjs

Querido neto,

Como sabes, sou grande amiga da Maria da Fé, temos apenas um ano de diferença. Tenho uma grande admiração pela sua linda e longa carreira.

É respeitada porque nunca fugiu da essência do fado: aquela mistura de tristeza e verdade, de vida vivida e sentida. E é por isso que, quando se fala de fado, o nome dela vem sempre à baila.

Por falar em fado, nem imaginas as coisas que me acontecem…

Estava eu há dias na esplanada da Ericeira, quando vejo um velho amigo dos tempos em que eu vivia em Paris, nos anos sessenta! Abraços, palmadinhas nas costas, até que ele pergunta:

– Cantas aqui?

Olhei para ele, espantadíssima:

– O quê?!

– Pergunto se é aqui que costumas cantar.

Só passados alguns minutos é que me lembrei: nesses anos 60, em Paris, para conseguir algum dinheiro, havia um bar frequentado por muitos portugueses onde eu cantava à noite! E ele pensava que eu aqui fazia o mesmo!

– Já não canto para ninguém! – digo.

– Que pena! Cantas tão bem! Podias fazer o mesmo aqui nesta esplanada.

Olho para o balcão, mas felizmente o Sr. Rui não estava lá. Respiro de alívio.

E ele continuava:

– Ainda hoje me lembro dos fados que tu cantavas…«Ai Mouraria/ do homem do meu encanto/ que me mentia /mas que eu adorava tanto…» Era um dos que eu gostava mais! … Ainda te lembras dele?

Com medo que me peça para o cantar, digo logo que não:

– Já foi tudo há tantos anos…

Mas ele não desiste:

– Mas também cantavas músicas francesas, sobretudo da Patachou… Bons tempos!

E lá se levanta da cadeira, e lá se vai embora – prometendo voltar.

Pelo sim, pelo não, acho que vou ver se ouço algumas cantigas desse tempo, em que eu e muitos de nós, para fugirmos à ditadura, procurávamos lugares longe daqui.

Com fado ou sem fado.

Que para fado, então, bastava o nosso!

Fica já combinado que o nosso jantar de Natal este ano será no Senhor Vinho. Uma oportunidade de conheceres o espaço e de eu estar com a minha amiga. Vai valer a pena!

Bjs