Sentindo que o mundo lhe foge, o expulsa e isola, que o condena à impotência, diante da difusa conspiração do regime informativo e noticioso, o paranóico assume uma estratégia que lhe permite reconquistar o centro, construindo uma conspiração reversa, à sua escala, tantas vezes estapafúrdia, tosca, cheia de buracos, mas capaz ainda assim de sustentar alguma coerência, colar os farrapos e devolver um nexo narrativo, sendo a narração a nossa cola, o modo de integrar os fragmentos e forjar algum sentido.
Suponha que… entre 2001 e 2028 (digamos), o mundo contraiu uma doença que ninguém se deu ao trabalho de diagnosticar porque os sintomas eram demasiado subtis… misturados com os acontecimentos da história, indiferenciados um por um, mas no seu conjunto… fatais? Começamos por um pastiche pynchonesco, uma conjectura arrancada a um dos personagens do romance de estreia deste autor de culto, quase um místico norte-americano. E este período de incubação deverá servir-nos para entrarmos no jogo, abrirmo-nos a essa crença de que tudo está relacionado, de que, nos nossos dias, a única forma de lidar com as torrentes absurdas de cargas informacionais é banhar-se nelas, deixar-se baptizar, crismar, e colher todas as unções ao dispor, gratificando o nosso fetichismo factual. Aceitar que tudo é signo e representação, tudo é passível de ser incorporado num esquema interpretativo imensamente poroso e flexível. Este tempo pede-nos um estômago desproporcionado, sendo a única forma de ordenar todas as peças soltas num sistema que, de outro modo, não seríamos capazes de compreender ou sequer de fingir controlar. Esta é a ficção essencial nos nossos dias, sendo o intelecto desafiado a ler uma trama que, pelo efeito da sua prolixidade, instiga o leitor à paranóia. A todo o momento somos forçados a balançar entre planos e culturas, tentando abarcar todo esse impulso de descarga e conceber a partir de fragmentos algo que se organize como um todo. Se alguns suspeitam que as próprias dimensões do tempo e espaço começaram a definhar, a apresentar uma série de falhas, de erros técnicos, a forma como alguns dos mais ambiciosos romancistas norte-americanos abraçaram, não sem uma boa dose de ironia consciente, a paranóia diz-nos muito da utilidade desta a um nível teleológico no sentido de devolver o mundo a uma grelha minimamente inteligível. Como diz a certa altura o protagonista de Arco-Íris da Gravidade: Se há algo de consolador – de religioso, se quisermos – na paranóia, também há a antiparanóia, onde nada se liga a nada, uma condição que poucos de nós conseguem suportar por muito tempo. Quer queiramos quer não, flutuamos à deriva numa imensa massa de detritos e dejectos, todo o “esterco pretérito” dessa matéria descartada, passados enterrados, um “somatório do que acontece aos anseios humanos depois da intervenção do tempo e da tecnologia”, como notava Rogério Casanova numa recensão a Submundo de Don DeLillo. E se o tempo parece mais relativo que nunca, como se ele mesmo estivesse infectado pela ansiedade do presente, a tecnologia deixou gradualmente de exemplificar uma extensão da racionalidade, transformando-se num princípio de força cega, como nos indica Casanova a partir da leitura de Pynchon. Esta emergência de um submundo, com a sua carga de entidades ou fenómenos espectrais, com uma profusão de conspirações mais obscuras ou ridículas em todos os sentidos, empurra-nos necessariamente para enredos caleidoscópicos, e também entre nós este regime de ficção que abraça esta textura do conhecimento acumulado, procurando formular “um único fôlego narrativo, ao invés de dez mil farrapos de desinformação” (DeLillo). Gonçalo M. Tavares é o mais recente membro a embarcar nesta nebulosa estética, tendo acabado de publicar uma epopeia satírica que se estende por 900 páginas, em que testa os frágeis limites epistemológicos do mundo actual, dizendo a certa altura que, numa empreitada destas, é preciso mover-se com toda a cautela: “É necessária incerteza, expectativa,/ ansiedade e, acima de tudo, uma tomada de/ posição lúdica mas política”. Ainda é cedo para fornecer uma dessas sinopses frenéticas e perceber se ele se mostrou à altura desses talentos colossais que desde há décadas foram preconizando esta concatenação de abalos, levando a que a textura da realidade transmitisse antes de mais um tremor aos nossos juízos. Sendo certo que Tavares sempre foi hábil no pastiche, resta perceber se O Fim dos Estados Unidos da América, uma década e meia depois do magnífico Viagem à Índia, consegue corresponder às expectativas. Numa nota inicial, esclarece que o grosso desta epopeia foi escrito entre 2019 e o início de 2020, mas que a pandemia veio a provocar uma suspensão, adiantando, que, “de qualquer maneira, por norma, deixo sempre os meus livros a criar dureza ao tempo durante anos”. É uma forma de perceber se a matéria se mostrou capaz de um processo de fermentação e, então, provou ser digna de vir a lume. O arranque, e as primeiras dezenas de páginas, são algo desencorajador, e parecem demasiado reminiscentes das primeiras páginas de Mao II, querendo aproveitar a energia que se respira num estádio enquanto decorre uma partida de futebol americano. “Penso nestas personagens como personagens de uma banda desenhada greco-trágica, americana e yankee da cabeça às botas de cano alto; uma tragédia grega em que a imaginação faz o que quer”, adianta Tavares na nota inicial. Seja como for, mais do que nos determos nesta ou naquela obra, seria importante compreender as circunstâncias que levaram a que o romance, esse processo de investigação ou digestão que subverte a compulsão historicista, tenha adoptado tão amiúde, e mesmo que de forma muitas vezes paródica, a estética paranóica. Perante o enxame fervilhante, a dispersão celular da realidade que tem de ser destilada e categorizada de algum modo, de forma a que possamos penetrar nela, vemos como a mente paranóica nos seus atropelos algo esquemáticos pode servir pelo menos para nos fornecer um modelo para se prosseguir ponto por ponto, uma vez que, se esta abdica de fazer distinções, e atribui valor automático a tudo aquilo que não sabe, também está dominada de uma persistência medonha, de tal modo que consegue impor-se à realidade, assumir também um papel determinante com o seu ensejo de extorquir de qualquer segredo um propósito circular e uma possibilidade de a partir dele desmontar toda a trama. Este é um modo efusivo de subverter a entropia, e é natural que a sua “fetichização da ignorância” (Casanova) possa atrair os romancistas, se considerarmos que a tarefa do romance é, em cada geração, contar a história secreta, os conluios e, desse modo, a ficção torna-se um enredo compensatório, produzindo enciclopédias tresvariadas, imensamente lúdicas, com toda aquela puerilidade que, como nota Casanova, cumpre uma função elegíaca, intensificando a nostalgia, que se tornou o registo emocional de todos nós num momento em que nos sentimos ultrapassados pelo ritmo da realidade, que nos devora e nos faz sentir atirados para fora do mundo, exilados por incompreensão das suas intrigas e processos. De algum modo, estamos todos nalgum degrau nas escadas de incêndio, habitantes das traseiras, com hábitos e gestos que se parecem com ecos de um passado cada vez mais remoto, a formular hipóteses como sinais de fumo, incapazes de acompanhar o registo alucinante do presente, expulsos desse imenso edifício inexpugnável ou então cumprindo apenas tarefas de vigilância no perímetro exterior, ou como estafetas entregando pacotes de que só sabemos o peso, integrados num fluxo sem compreender nada da sua substância.
“A História é a soma de todas as coisas que eles não nos dizem.” Eis uma frase proferida por uma das personagens de Libra (1988) de Don DeLillo. De algum modo esta sensação de se contactar diariamente com camadas de informação e desinformação face às quais muito poucos conseguem provar um verdadeiro discernimento, uma competência para interpretar e integrar esses elementos oferecendo pronunciamentos oraculares, o certo é que toda esta carga de ruído exige a sua épica própria, uma vez que, como vinca DeLillo “o lixo possui a sua própria energia”. Não só isto, como “a realidade só acontece a partir do momento em que analisamos o pontilhado”. O facto é que, desde que em meados do século passado foi inventada a Bomba, e desde então se concatenaram uma série de ameaças existênciais, a condição paranóica começou a operar como um contágio, invertendo-se a lógica, tendo sido este efeito a produzir as causas, a gerar as estirpes de uma série de vírus. Como nos dizem Gilles Deleuze e Félix Guatari em Mil Planaltos. Capitalismo e Esquizofrenia 2, “No lugar do grande medo paranóico, encontramo-nos presos por mil monomanias, evidências e clarezas que brotam de cada buraco negro e que não fazem sistema, mas sim rumor e zumbidos, luzes ofuscantes que dão a qualquer um a missão de juiz, de justiceiro, de polícia por conta própria, de um gauleiter, de um chefezinho de prédio ou de casa. Venceu-se o medo, abandonou-se as margens da segurança, mas entrou-se num sistema não menos concentrado, não menos organizado, um sistema de pequenas inseguranças, que faz com que cada um encontre o seu buraco negro e se torne perigoso no seu buraco, dispondo de uma clareza sobre o seu caso, o seu papel e a sua missão, mais inquietantes do que as certezas da primeira linha.”
Assim, e no contexto desses processos de informação que procuram forçar a mente a adaptar-se a um regime viral, e quando toda a campanha publicitária que tem produzido uma bolha financeira monumental com os investimentos nos complexos que irão sustentar os gastos de processamento de dados da inteligência artificial, não é de estranhar que o romance se entregue também ele a essa opulência, adoecendo de imprecisão e vertigem, tornando-se pomposo, crescendo em número de páginas, como se quisesse ele mesmo devorar o mundo, toda a vida do leitor, e isto pela sua incapacidade de deixar de estabelecer ligações, sendo também ele dominado pela urgência do paranóico de estar no centro de todas as conspirações, adorando-se a si mesmo, sendo “o bezerro de ouro do seu próprio misticismo” (James Wood).
Não deixa de ser curioso que as recensões críticas ao recente Shadow Ticket, possivelmente o último romance de Pynchon, que conta hoje 88 anos, alinharam segundo a ideia de que este não poderia deixar de desiludir, sendo uma obra que emergia já desfasada face à profecia formulada pelo seu autor há tantas décadas. Afinal que efeito poderia ter um romance de Pynchon num momento em que a própria realidade americana parece ter-se tornado ela mesma pynchonesca? De mais a mais, depois de quase uma década sem publicar qualquer romance, este que possivelmente nem será traduzido para a nossa língua, era mais um desses divertimentos, esses actos com que o autor entretinha a sua audiência no intervalo enquanto ia firmando outro dos pilares fundamentais da sua obra. Não era, portanto, o testamento por que ansiavam os seus devotos leitores, esses que formam em si mesmos uma espécie de confraria de iluminados entregues aos seus regimes de criptografia amadora, que confundem a vigilância com a pose, e a inteligência com um certo maneirismo conspirativo. Cultivando aquela superioridade episódica de quem trafica o sentido da nossa realidade difusa como uma piada privada interminável, ostentando um passe para bastidores onde nada acontece. Este tipo de culto não deixa por isso mesmo de entretecer a sua farsa, circulando entre nós como oficiantes de uma paródia iniciática, e reciclando, com zelo sacerdotal, os lugares-comuns do nosso tempo. Estes hermeneutas, com a sua vaga ascensão beatífica em obscuros fóruns do ciberespaço, promovem assim essa gnose infinitamente irónica, que não irradia nada, apenas devolve — em modo cabotino — o nevoeiro cultural onde aprenderam a mover-se.
Mais interessante seria tentar perceber porque motivo os críticos se puseram de acordo detectando uma indignidade particularmente dolorosa que se teria abatido sobre Pynchon, num momento em que se vê ultrapassado por uma realidade que em tantos aspectos rima com o quadro das ficções que ele nos foi propondo desde os seus 26 anos, quando se estreou com V. Nas páginas do Times, a crítica Parul Sehgal fala mesmo numa espécie de “pilhagem espiritual”, reconhecendo como desde esse primeiro romance, e depois em Leilão do Lote 49 (1966) e Arco-Íris da Gravidade (1973), Pynchon “desencadeou uma visão da América que hoje nos soa absurdamente familiar — um mundo envolto em conspirações que é vasculhado por autoproclamados detectives decifrando cada sinal e indício, guiados pelo facho incandescente da sua própria rectidão. Todos eles atraídos para esta orgia de análise, para se banquetearem e empanturrarem de informação, enlouquecendo um pouco no processo”.
E qual é o problema de Pynchon nos ter oferecido mais um circuito com as tentações de antes? No entender de boa parte da crítica, Shadow Ticket vem confirmar que esta ficção ritualística nos seus processos se tornou redundante, tendo em conta que a própria realidade nos ilumina o rosto a cada manhã através da luz do telemóvel ainda antes de confirmarmos que o sol está a fazer a sua ronda habitual, e isto porque esse pequeno ecrã consegue precipitar-nos nos tantos “poços fervilhantes de suspeição” que se escavam a cada dia que passa… “— aqui, um grupo entrega-se a uma leitura cirúrgica das mensagens que o homem acusado de matar Charlie Kirk gravou nas cápsulas das balas; ali, outro dobra-se em casquinadas ridicularizando-os por levarem a sério aquelas inscrições. O director do F.B.I. publica uma lista de interrogações em aberto sobre o homicídio, prometendo investigar cada uma, incluindo os ‘gestos de mãos’ de todos aqueles que estavam a assistir e refere-se ainda à aparente actividade suspeita de um avião. De um lado e do outro formam-se barricadas discutindo se Israel matou Charlie, se tudo não passou de um engodo para distrair dos ficheiros Epstein. O tipo que antes apresentava o canal Infowars junta-se à festa e oferece o seu palpite: ‘Tudo isto parece apenas um encobrimento sobre um encobrimento sobre um encobrimento.’”
Qualquer que seja o ângulo, e por mais que procuremos assumir uma postura desapaixonada, céptica em relação a todos estes fenómenos, isso apenas nos coloca à margem de um frenesim, como ermitas conjunturais, enquanto o pagode segue em busca de um sentido qualquer, mas movido sobretudo pela fantasia lúdica, pela futilidade de todos estes esforços que passaram a dominar o próprio contexto político, sendo que mesmo esses comentadores que pontificam numa esfera pública que se confunde cada vez mais com a esfera televisiva e o alinhamento noticioso não fazem outra coisa senão campear esta espaventosa intriga que deve muito mais ao boato do que a uma busca de informações fidedignas. Assim, parece iniludível que a música que triunfou foi essa que Pynchon treinou os nossos ouvidos para captarmos, é ele o grande cronista desta ficção emergente e que se impôs como uma simulação que degradou e substituiu a realidade. Um par que encontraríamos para este escritor norte-americano no campo da sociologia e da filosofia é Jean Baudrillard, que compreendeu bem como a velocidade do guião, no reflexo indiferente que nos transmitia a televisão, ao emanar essa luz doentia capturando-nos no filme dos dias e das noites através de um espaço vazio, faria de nós reféns da sucessão maravilhosa sem afecto dos signos, das imagens. Ele entendeu como “a velocidade é o triunfo do efeito sobre a causa, o triunfo do instantâneo sobre o tempo como profundidade, o triunfo da superfície sobre a profundidade do desejo”. Não só apaga as referências territoriais, mas sobe o curso do tempo para o anular. Assim, promove o triunfo do esquecimento sobre a memória, e produz este estado de “embriaguez inculta, amnésica”. Ao adaptarmo-nos a este regime, ficamos condenados a parasitar o contorno dos fenómenos, ruminando os efeitos de um regime em que mesmo o verdadeiro se torna um momento do falso (Debord), gerando processos de manipulação da consciência, através de campanhas difusamente orquestradas, lógicas de distracção ou desinformação, mentira. E a própria verdade torna-se inconsequente, pois o que isto consegue é levar a uma extenuação das formas, apagando rastos. A consciência torna-se meramente um dispositivo referencial, um desenho intersticial, recortando fragmentos e combinando-os num puzzle que vai crescendo exponencialmente até ser ele a deglutir-nos. Há uma cena em Libra em que Don DeLillo ilustra perfeitamente este modo de se enredar e ficar captivo desta orgia espectacular dos processos de informação, da sua excentricidade generalizada: «Ele deixara de tecer comentários acerca deste hábito peculiar da mulher. Ela dizia que os recortes de imprensa que enviava aos amigos eram um modo perfeitamente razoável de se corresponder com eles. Havia mil e uma coisas para recortar, e todas diziam qualquer coisa acerca do modo como ela se sentia. Ficou a vê-la ler e recortar. Usava óculos de meias lentes e manejava a tesoura com ar severo. Estava convencida de que aqueles recortes eram formas personalizadas de expressão. Achava que nenhuma mensagem que pudesse enviar a um amigo seria mais íntima e mais reveladora do que uma história no jornal acerca de um acto violento, um homem tresloucado, o lar de uma família negra atacado à bomba, um monge budista que se imola pelo fogo. Porque são estas as coisas que nos explicam como vivemos.»
Também o filósofo alemão Peter Sloterdijk, no mesmo ano em que foi publicado o romance de Don DeLillo, publicou a seu Magnum opus, Crítica da Razão Cínica, detectando a disposição que viria a universalizar-se a partir do momento em que se desse a revolução algorítmica, levando a efeito já não um editorialismo de lógica sensacionalista, mas a própria construção dos factos políticos de acordo com uma captura dos impulsos, um enredo libidinal cretinizante. «Consideramos hoje normal encontrar nas nossas revistas – quase como num velho teatro do mundo – todos os domínios justapostos de uma forma contrastada: narrativas sobre a morte de massas no Terceiro Mundo entrecortadas por anúncios ao champanhe, reportagens sobre catástrofes ecológicas lado a lado com o último salão do automóvel. Os nossos cérebros estão treinados a sobrevoar com o olhar um campo de indiferenças de uma amplidão enciclopédica – em que o assunto tratado não é indiferente em si mesmo mas pela sua integração no fluxo de informações dos media. Sem se treinar durante muitos anos a embrutecer-se e a amolecer, nenhuma consciência humana poderia lidar com o que lhe impõem imagens e textos de uma única revista volumosa; e sem um exercício intenso, nenhum homem suportaria, sem arriscar a aparição de sintomas de desintegração mental, essa constante oscilação de acontecimentos importantes e de acontecimentos insignificantes, essas marés cheias e vazas das notícias que tanto pedem uma atenção extrema para, logo depois, estarem totalmente desactualizadas.»
Os media foram testando e aperfeiçoando o poder esotérico e ritual do artifício, e, enquanto isso, como sinalizou Baudrillard, a política libertava-se no espectáculo, no efeito publicitário a todo o custo. Isto explica, em parte, a viragem à direita com a adopção do mito, distribuído e elevado pelas novas tecnologias a um regime viral e escandaloso, dando ao poder a imunidade daquilo que não pode mais ser desmascarado, já que a própria política só tem força de irradiação a partir do momento em que é suficientemente sórdida para aliciar e entreter, manter-nos encadeados.
O próprio facto político está assim aberto a uma anomia, uma constante redefinição e luta, a verdade, enquanto conceito, desintegra-se; tudo passa a ser susceptível de apropriação pela força, o que faz com que seja a própria consciência o plano de uma guerra civil. Peter Sloterdijk reconheceu este processo ainda no seu elemento larvar: «Uma tremenda simultaneidade alastra na nossa consciência informe: aqui come-se; ali morre-se. Aqui tortura-se; ali, amantes célebres separam-se. Aqui fala-se da segunda viatura; ali, de uma catástrofe de seca que afecta países inteiros. Aqui, dão-se dicas para pagar menos impostos; ali, há a teoria económica da Escola de Chicago. Aqui milhares de pessoas fazem alvoroço num concerto pop; ali, uma mulher morta jaz no seu apartamento durante anos sem ser descoberta. Aqui dá-se o prémio Nobel da química, da física e da paz; ali, um comboio cai num rio com duas mil pessoas. Aqui nasce a filha de um ator; ali, as avaliações sobre o custo de uma experiência política cifram-se entre meio milhão e dois milhões (de homens). – Such is life. Tudo pode tornar-se notícia, tudo está disponível. O que está no primeiro plano, o que está em pano de fundo, o que é importante, o que não tem importância, o que é tendência, o que é episódico; tudo se integra numa linha uniforme, em que a uniformidade produz também a equivalência e a indiferença.»
Na referida recensão crítica a Shadow Ticket, Sehgal lembra como Richard Hofstadter proferiu uma conferência influente em Oxford, mais tarde publicada como The Paranoid Style in American Politics (1964), traçando as raízes da paranóia tanto na esquerda como na direita, entre nativistas e abolicionistas, anti-mórmons e anti-maçons, entre teóricos da conspiração e a imprensa. Lamentava o duplo sofrimento do paranóico, “afligido não só pelo mundo real, como o resto de nós, mas também pelas suas fantasias.” “Paranóia” viria a impor-se como a palavra que maior sombra projectava numa década abalada por assassínios e violência política, culminando nos homicídios de Manson, em 1969. E se muitos fizeram uso desse filtro, foi Pynchon quem nunca mais o largou. “A paranóia pertence a Pynchon”, diz-nos Sehgal. “É o pulso dos seus romances e o segredo da sua arquitectura — os padrões e jogos, as coincidências estranhas que coloca no caminho do leitor, como se tentasse cultivar em nós o tremor imaginativo do paranóico.”
Sehgal cita uma passagem de Slow Lerner, volume que reúne cinco contos que nos permitem vislumbrar as primícias da ficção de Pynchon, ilustrando assim como a consciência foi afectada na era da bomba atómica: “Creio que todos tentámos lidar com esta lenta escalada da nossa impotência e terror das poucas maneiras que estavam ao nosso dispor. Desde não pensar nisso até enlouquecer por causa disso. Algures neste espectro de impotência situa-se o acto de escrever ficção sobre o assunto — ocasionalmente, como aqui, deslocado para um tempo e lugar mais coloridos.”
Hoje é evidente como o poder tudo faz para alimentar as nossas concepções paranóicas, levando a um atrofiamento dos processos colectivos, a suspeição que atinge toda a realidade. Assim, estamos desarmados perante os processos de rápida conversão de elementos decisivos à arquitectura das nossas sociedades, com a ascensão da Inteligência Artificial, que depende, desde logo, de um processo de expropriação em massa e que passa pelo desrespeito dos direitos de autor, alimentando-se das nossas bibliotecas físicas e digitais, e preparando a cena para que a desigualdade que atingiu um nível sem precedentes, colocando nas mãos de uma pequena elite fortunas capazes de mobilizar decisivamente os processos económicos, e determinam um futuro em que os povos estão enclausurados em formas de servidão cada vez mais indignas. No meio disto tudo, deste efeito de sincronização que nos domina a partir da nossa atenção, enquanto a ansiedade nos derrota a partir do interior, em Arco-Íris da Gravidade Pynchon parecia diagnosticar um “anseio impuro”, ou talvez profano, diabólico, este anseio por uma vida legível, como explica Sehgal, por sermos capazes de “traçar não só os sistemas radiculares do poder nefando que nos rodeia, mas também as harmonias ocultas e, ao fazê-lo, sentirmo-nos sensíveis e úteis”. “A paranóia é o desejo de possuir algo do mundo, algum entendimento especial e secreto — é o conhecimento erotizado”, remata a crítica do Times.
Enquanto isso, vivemos num efeito constante de dissolução por perda do desejo, e vemos triunfar por toda a parte o american way of life, por meio desse desenvolvimento irreprimível da banalidade e da indiferença, uma violência triunfalista que coage à assimilação, reduzindo tudo a um exotismo comercial, sendo o mercado a derradeira fase do processo cultural, que determina a extinção de tudo quanto não seja capaz de se adaptar e integrar (ou seja, lutar e competir com cada fôlego) na malha envolvente. Era essa a principal tese de Tocqueville, a de que o espírito da América está no seu modo de vida, na revolução dos costumes, na revolução moral. “Esta não instaura uma nova legalidade nem um novo Estado, mas uma legitimidade prática: a do modo de vida” resume Baudrillard. “A salvação já não depende do divino ou do Estado, mas da organização prática ideal. (…) O facto é que a religião, por exemplo, entrou nos costumes, o que faz com que ela já não possa ser posta em causa ou questionada nos seus fundamentos, visto que já não tem valor transcendente. É a religião como modo de vida. Do mesmo modo, a política entrou nos costumes, como máquina pragmática, como jogo, como interacção, como espectáculo, o que faz com que ela já não possa ser avaliada de um ponto de vista propriamente político. Já não há princípio ideológico ou filosófico de governo, é simultaneamente mais ingénuo e mais conjuntural. (…) ‘Ecologizou-se’, psicologizou-se, secularizou-se para uso doméstico. Entrou no modo de vida.
Baudrillard pressentiu a fase mórbida que se seguiria, e, quando visitou o país, nos anos 1980, reconheceu que se este já não tinha a mesma hegemonia do período que se seguiu à II Guerra, a sua cultura havia-se propagado, tornando-se incontestada, e incontestável. «Era uma potência, tornou-se um modelo (a ‘empresa’ o mercado, a livre iniciativa, performance) que se universaliza até à China. O estilo internacional tornou-se americano. Nada já se lhe opõe verdadeiramente, as margens ofensivas reabsorveram-se (China, Cuba, Vietname), a grande ideologia anticapitalista esvaziou-se da sua substância.»
Assim, os EUA tinham ficado sujeitos àquilo a que este sociólogo francês caracterizou como um efeito de histeresia de potência. Histeresia: processo daquilo que continua a desenvolver-se por inércia, do efeito que continua quando a causa desapareceu. Assim, mesmo atravessando uma crise profunda que gangrenou os seus ideais, devido à sua envergadura, à sua sobredimensão, aquele país pode manter a sua selvajaria intacta. « Continua a funcionar como um corpo em movimento, através da velocidade adquirida, ou graças a um dispositivo de inércia, ou como um homem inconsciente que se mantém ainda de pé através da força do equilíbrio. Ou, de uma forma mais engraçada: como os ciclistas do surmâle de Jarry, que estão mortos de cansaço a pedalar durante a imensa travessia da Sibéria, mas continuam a pedalar e a propulsar a Grande Máquina, transformando a rigidez cadavérica em energia motriz. Notável ficção: os mortos talvez sejam até capazes de acelerar, e de fazer andar a máquina melhor do que os vivos, visto que não têm já nenhum problema.
Mas ainda aí, se parece evidente que houve como que uma ruptura de carga, ou uma ruptura de encanto, da máquina americana, quem dirá se isso se deve a uma depressão, ou a uma sobrefusão dos mecanismos?»
De algum modo, a América deixava de coincidir com a sua própria geografia, libertando-se também das categorias de uma temporalidade clássica, passando a exercer-se como uma potência de ordem cultural, viral, definindo a cultura deste hiperespaço ulterior, sem referência à origem, cada vez mais destacado da natureza, que vai degradando continuamente. A doença de que fomos inoculados naquele período corresponde a uma “feérie da indiferença, feérie das superfícies indiferentes”, segundo a formulação de Baudrillard. E voltando ao ensaio de Sloterdijk, podemos fazer um esforço por retraçar o germe daquilo que hoje vem a ser a recomposição algorítmica da realidade: «Assim, quando, de manhã, saio para a rua e os jornais do quiosque me interpelam, só tenho praticamente de escolher a indiferença preferida do dia. A minha escolha recairá neste homicídio ou naquela violação, neste terramoto ou naquele rapto? Todos os dias temos de reivindicar de novo o direito natural de não aprender milhões de coisas. Os media velam por que eu não tenha de recorrer a isso; e, simultaneamente, velam também por que milhões de notícias estejam prestes a atingir-me e eu não tenha de olhar para um título mais do que um instante sem que outra indiferença tenha conseguido atingir a minha consciência. Se conseguir atingir a minha consciência, leva-me também a ter de marcar em mim uma indiferença cínica relativamente à informação que me chegou. Hiperinformado, registo que só posso encolher os ombros ante a maior parte das coisas, pois a minha capacidade de participação, de revolta ou de co-reflexão é mínima relativamente ao que se me propõe e me lança apelo.»
Tal como aconteceu com Reagan, que, de acordo com Baudrillard, nunca suspeitou nem sequer levemente da existência dos pobres, também Trump só conhece a evidência da riqueza, a tautologia da potência, que alarga às dimensões da nação, ou mesmo do mundo inteiro. Perante esta ficção que se impõe por toda a parte e que passou a ditar o nosso horizonte político, “os deserdados são votados ao esquecimento, ao abandono, à desaparição pura e simples”, diz-nos o filósofo francês. “É a lógica do must exit. Poor people must exit. O ultimato da riqueza, da eficácia, apaga-os do mapa. (…) A sua lógica é impiedosa. Se a utopia está realizada, a infelicidade não existe, os pobres já não têm credibilidade. Se a América ressuscitou, então o massacre dos Índios não aconteceu, o Vietname não aconteceu.” Nem o Iraque ou o Afeganistão…
«A miséria que ainda se tentava aliviar, que era mantida na órbita de uma socialização assistida, tudo isso cai sob o golpe do decreto providencial (presidencial). É como se o Juízo Final já tivesse sido. Os bons foram julgados bons, e os outros foram relegados. Fim da boa vontade, fim da má consciência. O Terceiro Mundo, de sinistra memória, está apagado. Só serviu para a má consciência dos ricos, e todos os esforços para o salvar foram votados ao fracasso. Acabou. Viva o Quarto Mundo, aquele a que se diz: ‘A utopia está realizada, desapareçam os que não fazem parte’, aquele que já não tem direito a vir à superfície, disenfranchised, destituído de palavra, votado ao esquecimento, aquele que é ejectado e vai estoirar numa fatalidade de segunda ordem.»
Tudo aquilo a que estamos a assistir resulta da expansão do franchise norte-americano, é esse modo de vida americano, que nós julgámos por demasiado tempo ingénuo ou culturalmente nulo, é ele que nos dará o quadro analítico completo do fim dos nossos valores. Uma fase obesa da cultura, saturada, pletórica, sociedade obsessiva, fóbica, em que nos vemos asfixiados pela profusão. Em que perante os destroços da convivialidade, todos correm para a frente de si próprios porque se perdeu a fórmula de parar. Em que tudo está carregado de uma violência sonâmbula, e é preciso evitar o contacto para escapar a essa descarga potencial. Esse modo de vida que se impõe enquanto a ordem social «se contrai sobre as trocas, as tecnologias, os grupos de ponta, e ao intensificar-se assim desintensifica zonas inteiras, que se transformam em reservas, nem sequer reservas: descargas, terrenos vagos, novos desertos para os novos pobres, como se vê desertificar-se o território em volta das centrais atómicas ou das auto-estradas», acrescenta Baudrillard. Com as necessidades energéticas dos investimentos em centros de meta-dados, essenciais ao processamento de informação da Inteligência Artificial, não falta muito para que tudo se torne infra-estrutura embalada por luz e energia artificiais, e descenderemos a um magma de enredos sinópticos, sonhos alimentados por essas redes, que farão do humano um ser absolutamente dependente desta malha para a estimulação da sua atividade psíquica. E, por fim, com o seu ponto de vista místico sobre a decadência, Baudrillard remata: «Virtualmente, o mundo está libertado, já não é preciso combater por nada. Mas ao mesmo tempo grupos inteiros desertificam-se a partir do interior (os indivíduos também). O social esquece-os, e eles esquecem-se a si próprios. Caem para fora de campo, zombies votados ao apagamento e às curvas estatísticas da desaparição. É o Quarto Mundo. Sectores inteiros das nossas sociedades modernas, países inteiros do Terceiro Mundo, caem para essa zona desertificada do Quarto Mundo. Mas enquanto o Terceiro mundo ainda tinha um sentido político (mesmo tendo sido um estrondoso fracasso mundial), o Quarto Mundo não tem. É transpolítico. É o resultado do desinteresse político das nossas sociedades, do desinteresse social das nossas sociedades avançadas, da excomunicação que acomete precisamente as sociedades de comunicação.»