Portugal habituou-se a conviver com uma ideia perigosa: a de que a Justiça é inevitavelmente lenta, inevitavelmente opaca, inevitavelmente distante. Como se fosse um dado da natureza. Mas não há democracia, economia ou coesão social que resista a esta normalização do atraso. A Justiça não é um serviço público entre outros – é o alicerce que sustém todos os restantes.
Esta semana, o alicerce deteriorou-se um pouco mais: escutas a conversas banais entre ex-membros do governo de António Costa escarrapachadas em revistas, como se o Estado tivesse licença para a devassa. Não se trata de defender o antigo governo de António Costa, até porque, no caso, são meus adversários políticos; trata-se de defender princípios. E um dos princípios é este: os fins não justificam todos os meios – mesmo quando do lado de lá estão os nossos adversários.
O problema é mais profundo do que episódios mediáticos. É estrutural. Décadas de acumulação de processos, prazos que se estendem para lá da memória, cidadãos e empresas que esperam anos por uma decisão que, quando chega, já não serve o presente que a motivou.
Perdemos demasiado tempo com diagnósticos. Criámos comissões, relatórios, pactos, agendas – tudo mecanismos de adiar o essencial. Chamámos ‘complexidade’ ao que muitas vezes é apenas desorganização. Chamámos ‘prudência’ ao que tantas vezes não passa de falta de coragem de tomar decisões que poderão não ser do agrado de todos.
A tentação de responder a este cenário com punitivismo é, ao mesmo tempo, compreensível e ilusória. Compreensível, porque aparenta estar a fazer algo. Ilusória, porque nada faz: aumentar penas não acelera processos; endurecer leis não cria eficiência. Confundir severidade com justiça é o primeiro passo para falhar as duas.
O que falta não é indignação; é direção. Falta clareza de propósito. Tribunais que decidam a tempo. Conservatórias que registem a tempo. Leis simples, que devolvam previsibilidade. Um Estado que assuma aquilo que é exclusivamente seu e que não se distraia com o que não é.
Reformar a Justiça não é um exercício técnico. É um ato de coragem institucional: colocar o cidadão no centro; colocar a decisão no tempo certo; colocar o Estado à altura do país que devia servir. Parece um conjunto de platitudes, mas é precisamente disso que a Justiça precisa: simplicidade.
O grande erro nacional tem sido esperar pelo consenso absoluto pela reforma perfeita. Com isto, não temos nem consenso nem reforma. Democracia não é unanimidade. Democracia é escolha – clara, transparente, assumida.
A história mostra que os países progridem quando assumem reformas difíceis, não quando prolongam adiamentos confortáveis. Até a União Europeia se apercebeu disso, e criou um pacote de desregulamentação e desburocratização Omnibus que poderá ajudar a desentupir tribunais e libertar a economia de litigâncias.
A reforma da Justiça passa, também, pela simplificação da lei e das regulamentações e por um enorme esforço de desburocratização. Simplificar a lei facilita a sua interpretação por parte dos cidadãos e a sua aplicação por parte dos juízes. Não lhe chamemos, porém, Omnibus. No país onde um ato jurídico de constituição de Empresa na Hora chega a demorar 7200 horas – 10 meses – talvez um Boeing 747 seja o veículo apropriado onde enfiar tanto diploma.