Anabela Valente: “Um dos objetivos da Maçonaria é melhorar o homem e a humanidade”

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Entrevista a Anabela Valente, grande-mestra da Grande Loja Feminina de Portugal, que explica a importância da Maçonaria feminina. Recusa que seja um espaço onde se ‘trocam favores’ e diz que há muito preconceito, razão para muitas não assumirem que são maçonas. ‘Se a ministra da Saúde é maçona? Pergunte-lhe a ela’, diz.  ‘As pessoas esquecem-se do bem que a Maçonaria fez’, acrescenta.

Que sentido faz existir uma loja maçónica feminina?

Faz todo o sentido. Nos tempos que correm, que são tempos muito crus, muito positivistas, é necessário uma outra dimensão na vida das pessoas. E a maior parte sente falta dessa dimensão mais espiritual, pois não há muitas respostas na sociedade. Precisam também de se encontrar a si mesmas, de se conhecer, e a Maçonaria é um espaço para isso mesmo. Faz sentido uma obediência ser só feminina? Para nós faz sentido, gostamos de trabalhar só com mulheres, até porque este processo de descoberta de nós mesmas, às vezes é um processo doloroso, é um processo complicado, e é mais fácil de o fazer entre mulheres. Preferimos trabalhar entre mulheres, o que não quer dizer que não trabalhemos, refletimos e pensamos e fazemos coisas também com homens, e com lojas mistas.

O que fazem na loja?

Um dos objetivos da Maçonaria é melhorar o homem e a humanidade. E percebemos que o melhoramento das pessoas é essencial, primeiro conhecerem-se, perceberem quais são os seus defeitos, as suas virtudes, melhorar o que é defeito e aprimorar o que é virtude, para depois passar esse seu exemplo, esse seu conhecimento, para a sociedade. Sem boas pessoas também não se faz um mundo mais justo. O que nós fazemos? Temos rituais, um ritual, como o nome diz, é um guião que nós praticamos sempre que nos encontramos. E esse ritual utiliza uma linguagem simbólica, que nos ajuda a perceber melhor o mundo, percebermos melhor a nós mesmas e a nossa relação com o mundo.

O ritual é muito diferente do dos homens?

Não há grandes diferenças. 

E o juramento é feito com a mão em cima de quê?

Depende da loja, nós temos lojas em que é feito em cima da Bíblia, e temos lojas que é feito em cima da Declaração de Princípios da Grande Loja, há outras lojas que o juramento é feito sobre a Torá, sobre a Declaração dos Direitos do Homem. Varia. Geralmente, as lojas de rito francês é sobre a Declaração de Princípios. Algumas de escoceses também, mas também há umas que juram sobre a Bíblia.

Há maçons que são católicos, nomeadamente na Regular.

Sim, em todas as maçonarias, em todas as obediências, há maçons que são católicos.

A Maçonaria Regular não reconhece a vossa obediência. Como é que estiveram com eles, no último fim de semana, lado a lado?

Nós já estivemos noutras ocasiões, quando foi do ataque ao Charlie Hebdo emitimos um comunicado conjunto, em eventos brancos, não rituais, convivemos.

Se eles não vos reconhecem como é que se dão com eles?

Essa atitude está a alterar-se. Esta decisão do atual grão-mestre, do Paulo Rola, foi muito importante, ele decidiu trabalhar connosco, Grande Loja Feminina, e com o Grande Oriente Lusitano, foi mesmo muito importante. E penso que se está a fazer um caminho para, mais tarde ou mais cedo, haver esse reconhecimento.

Como encara as críticas que dizem que todas as associações secretas têm como único objetivo ser lobistas, trocar favores, ajudar os seus irmãos em detrimento dos não irmãos?

As pessoas têm medo do desconhecimento e as teorias da conspiração, às vezes, são mais fáceis do que perceber e tentar entender como é que as coisas são. Não somos nem lobistas, nem fazemos favores, nem obedecemos ao venerável mestre a todo custo. Porque, acima de tudo, somos pessoas que se tentam melhorar, que se tentam aperfeiçoar todos os dias. E temos valores e princípios.

 Qualquer pessoa procura isso sem ir para a Maçonaria.

Às vezes não está assim tão presente quanto isso.

Há pessoas que vão à missa, que vão…

Sim, são todos caminhos para esse aperfeiçoamento, mas há muita gente que não faz isso.

A sua Obediência não tem nada a ver com influência de poder?

Não, não tem.

Então é só para se conhecerem umas às outras e transformarem-se em melhores pessoas?

É, e transformar o mundo…

Mas para transformar o mundo é preciso influência.

É preciso influência que nós podemos exercer. Não é essa influência que dizem… Dou um exemplo: temos muitas professoras que, através do ensino, podem transmitir valores aos alunos. Por exemplo, esta conferência que nós fizemos sobre a paz, que tem recomendações e tem conclusões, pode ser utilizada para uma educação para a paz, que não existe nas escolas. O conteúdo das aulas de cidadania é demasiado vago, deveria ser uma cultura para a paz, que não há. A nossa Educação, neste momento, está a precisar de uma reformulação. A violência no namoro, a violência contra as mulheres, a violência é uma constante na sociedade e começou a crescer entre os jovens. Podemos ter alguma influência nisso, através das irmãs, e é essa influência que nós temos.

Foi aprovada uma lei que diz que os titulares de cargos públicos têm que confessar se pertencem à maçonaria.

Penso que não é obrigatório, é facultativo. Não estou a ver uma lei dessas passar.  Mas se há titulares de cargos públicos que pertencem à maçonaria, e se quiserem dizê-lo, não há qualquer problema.

Há um caso muito falado na vossa Obediência que é a ministra da Saúde.

Não vou comentar esse caso, porque tudo o que eu diga, se digo que sim ou diga que não, não vou dizer. Se quiser saber mais alguma coisa, se pertence ou não tem, tem que falar com ela, não é comigo.

Por que há este secretismo de as pessoas preferirem não assumirem?

Isso não é verdade. Há muita gente que assume, há muita gente que dá a cara, há muita gente que diz que pertence à Maçonaria. Há outras pessoas, por várias razões, exatamente por esse preconceito que existe contra a Maçonaria, que preferem omitir essa condição. Vamos supor uma profissão liberal, como advogados, que esteja conotada com a Maçonaria, podem ter problemas, podem perder clientes. É um preconceito que vem da Primeira República, por causa do regicídio. Quando comecei a interessar-me pela Maçonaria, e ainda ouvi várias vezes, que eram aqueles que tinham morto o rei. Ainda existe esse preconceito. E esquecem-se de tudo aquilo que a Maçonaria fez de bom. Em Portugal é paradigmático o Serviço Nacional de Saúde, que foi feito no Grande Oriente Lusitano, pelo António Arnault, com a ajuda dos irmãos.

Hoje diz-se que a Saúde continua dominada pelos irmãos, e que os contratos passam, precisamente, pelos irmãos.

Não faço a mínima ideia, mas pela minha Obediência não passam.

 O que a fez entrar na Maçonaria, sendo até uma coisa conotada com homens?

Comecei a trabalhar na Câmara Municipal de Lisboa, na divisão de cemitérios. Sou de História, o meu trabalho era estudar o património dos cemitérios, e deparei-me com a maçonaria, quer pela simbólica toda que existe nos cemitérios, que existe muita, os cemitérios são do século XIX, em que a Maçonaria começa a ter expressão. E depois conheci o professor Santinho Cunha, que era maçom assumido,  que já passou ao Oriente Eterno, como nós dizemos, e que me desafiou a entrar, Isto em 93.

Entrar onde?

Primeiro foi numa loja selvagem, que acabou pouco depois, ele tinha sido da Grande Loja Regular, e fundou uma loja selvagem, e convidou-me a entrar.

Essa loja selvagem tinha homens e mulheres?

Sim.

Como é que ficou quando a loja selvagem acabou?

Estive um ou dois anos adormecida, e depois entrei na Grande Loja Feminina de Portugal.

Que diferença sentiu entre uma loja mista e uma feminina?

É muito mais fácil trabalhar com mulheres, o rigor é maior. A exigência também é maior.

O que é isso do rigor e da exigência?

Nós temos um ritual que deve ser cumprido de forma rigorosa.

Não se põem em tronco nu como os homens?

Não, não. A iniciação, que é um momento mesmo muito forte…

As mulheres também ficam com os olhos vendados?

Também ficam com os olhos vendados.

E que tipo de perguntas são feitas para saber se pode entrar ou não pode?

Isso não é nessa altura, é feito anteriormente, são feitos inquéritos. Tentamos ser seletivas, e essa seleção não tem a ver com elitismo. Qualquer pessoa pode entrar, desde que seja boa pessoa, que esteja disposta a aprender, que esteja desperta para a necessidade deste lado espiritual, deste lado mais simbólico, do outro lado da vida. Que não é só a tendência positivista, materialista.

Que tipo de perguntas é que são feitas quanto estão de olhos vendados?

São perguntas rituais. O processo é todo feito anteriormente.

Mas que tipo de perguntas é que são feitas?

Se está disposta a melhorar, a renegar o vício. São perguntas rituais. O processo é todo feito antes, não é na altura que a seleção é feita.

E nessa seleção chumba muita gente? Afasta muita gente?

O único dogma que nós temos é que todo o ser humano é suscetível de ser melhorado. Quando percebemos, por exemplo, que as pessoas querem entrar porque há essa história que temos muita influência, quando a pessoa tem ideias racistas, quando não tem os valores que nós queremos e acreditamos, aí, geralmente, rejeitamos. Mas nós achamos que toda a pessoa é suscetível de melhorar.

 E a pessoa pode querer uma segunda oportunidade?

Pode.

Quando é chumbada, o que lhe dizem?

Isso mesmo. Que não cumpriu os requisitos.

Além do ritual, ainda não consegui perceber o que é ser rigoroso e exigente?

É isso mesmo. É cumprir ritualmente, e, às vezes, não é cumprido como deve ser. Exigente connosco mesmo, em termos de aperfeiçoamento. Fazemos trabalhos, apresentamos trabalhos, discutimos ideias, debatemos…

Como por exemplo?

Trabalhos simbólicos, sobre símbolos, trabalhos filosóficos, sobre o que se passa na sociedade, sobre o que se passa no tempo. Discutimos atualidade, problemas da atualidade.

Discutem as presidenciais?

Não discutimos política partidária. É inevitável discutir política, mas nem há sentido de voto, não é nada disso. Mas, por exemplo, discutimos os populismos, o terrorismo, a discriminação, a violência, agora discutimos a paz.

Quantas pessoas são na sua Obediência?

Somos cerca de seiscentas.

Divididas por várias lojas?

Sim, e pelo país inteiro.

Nunca se encontram todas ao mesmo tempo?

Não, não. O máximo é duzentas, trezentas.

Essas duzentas a trezentas pessoas depois mostram o trabalho realizado, tentando que o mesmo seja posto em prática.

Sim.

Tentam influenciar, certo?

Sim, de certa forma.

Qual a média de idade das irmãs?

Andamos à volta de uns cinquenta e cinco, sessenta anos.

Qual é a pessoa mais nova?

Ainda não tem trinta anos. Ultimamente têm aparecido mulheres muito jovens. As mulheres têm sempre um problema que é a idade fértil. Nos trinta é um bocado complicado, têm filhos pequenos. Só quando os filhos têm cerca de doze, treze anos e podem ficar sozinhos, é que as mulheres aparecem.

Ainda não consegui perceber o que leva uma jovem a ir para a Maçonaria.

Há muitas motivações. As pessoas não vão todas pela mesma razão. Nós somos diferentes. Eu fui porque tinha bastante curiosidade. Sabia o que alguns maçons tinham feito. Até porque um dos meus trabalhos foi escrever biografias de pessoas que estavam sepultadas num cemitério. E todas elas tinham, por exemplo, um antigo grão-mestre que acabou por morrer de uma sequela da febre amarela porque ele começou a tratar os doentes da febre amarela. Isto porquê? Foram princípios que ele aprendeu nas lojas e que cultivou, e pôs em prática na vida cá fora, na vida na sociedade. E posso-lhe dar o meu exemplo. Trabalhei na câmara, agora estou destacada na EGEAC, mas trabalhei na Câmara Municipal de Lisboa, e estive a coordenar o Gabinete de Estudos Olisiponenses, fizemos um trabalho sobre escravatura, inserido na Capital Ibero Americana da Cultura. E fizemos esse trabalho sobre as memórias da escravatura em Lisboa. O que esteve na base desse trabalho foi questionar um problema. Por que há racismo e  por que o racismo é tão presente nos países latino-americanos? Porque nós transportámos, em larga escala, escravos negros para a América, e esse transporte deu e alterou completamente a visão de uma civilização. Uma civilização que estava a seguir o seu caminho normalmente e que de repente é confrontada com este fenómeno de perder grande parte da sua população, que é transportada para as Américas para trabalhar nas minas, nas plantações. E também a nossa perspetiva em Lisboa, o que isso provocou aqui na nossa sociedade. Uma das razões pelas quais este trabalho foi feito, fomos nós que o delineámos no Gabinete de Estudos Olisiponenses, foi porque eu tinha consciência que era preciso trabalhar esta questão dos valores, deste problema que é o racismo, que é um problema que a sociedade portuguesa tem, e qual é a origem.

Mas conhece alguma sociedade que não tenha esse problema? Já alguma vez esteve em África?

Estive em Cabo Verde, de férias.

Mas se for a Angola, se for a Moçambique, vai perceber que há um grande racismo, não só com os brancos, mas entre os que são mais clarinhos, entre os que são mais escuros, onde os albinos são mortos à pedrada. Acha que o racismo é um fenómeno da Europa? E não havia escravatura antes de os europeus chegarem lá, a África?

Havia escravatura, sempre houve escravatura, nós tínhamos escravatura, os cativos. A escravatura era basicamente o castigo por crimes ou em consequência de guerras. Neste caso, foi puramente comercial e foi em larga escala, porque a escala que havia anteriormente não tem nada a ver com a escala que foi com o negócio transatlântico. Nem havia esta mudança tão drástica. Muitas vezes, os escravos continuavam a ficar na sua família, na sua aldeia, no sítio onde viviam, e só com o comércio transatlântico é que há esta mudança brutal de populações de um lado para o outro.

Tenho sempre a ideia que quando se fala de racismo se acha que os brancos têm que se autoflagelar.

Não, não, não.

Quando eu estava em Angola era o pula para aqui, pula para ali, e não foi por isso que pensei que a sociedade fosse racista, embora palermas existam em todo o lado.

Não acho que as pessoas se devam autoflagelar. As pessoas têm de compreender qual é a razão  de determinada atitudes. E depois imagine que uma criança negra vai a um museu. O trabalho que nós fizemos foi com museus, representações dos negros e ver os negros representados, ou em trabalhos servis, como criados, ou representados de forma caricatural, naquelas caixas de tabaco que nós encontramos no Museu de Arte Antiga e no Museu Bordallo Pinheiro, em que caricaturavam os negros. A nossa construção também se faz com estas representações. Quando a pessoa chega e vê-se representada daquela forma, tem de se desconstruir. Porquê que houve essas representações? As crianças têm de ter referenciais.

Isso não deve ser exposto?

Não, acho que isso deve ser exposto, mas deve é ser explicado por que essas representações são assim. Não deve haver censura.

 Têm uma boa relação com o Grande Oriente Lusitano.

Sim.

 Só que agora, além de parceiros, são concorrentes.

Não somos concorrentes.

Como assim? Eles abriram as portas a mulheres.

Sim, mas já há mais maçonarias que têm mulheres sem ser o GOL. Há o Direito Humano, que também tem mulheres, sempre nos demos muito bem com o Direito Humano. Há o Memphis Mesraim. Não é concorrência.

 Mas a mais conhecida é o GOL, que deu mais polémica por ter aberto as portas às mulheres, o que levou homens a dizer que saíam da Obediência. 

Isso foi mais folclórico que outra coisa, não me parece que seja bem assim.

Os homens não vão sair?

Não, pode sair um ou dois, mas não… Assim como nós, também não estou a ver as mulheres a saírem para o GOL.

 Não são concorrentes?

Não, são organizações diferentes. O espírito é o mesmo, os fins são os mesmos, os propósitos são os mesmos. Nós organizamos de uma maneira, eles organizam-se de outra. Essa é a única diferença.

 Não admite, na sua Obediência, um dia abrir portas aos homens?

É uma discussão que mais tarde ou mais cedo irá ocorrer. Neste momento, não sentimos necessidade dessa discussão.

Por que há esta diferença entre homens e mulheres?

Os homens e mulheres são diferentes. Vêm as coisas de forma diferente, são educados de forma diferente. Quer a gente queira, quer não, a forma como se educa uma mulher, uma menina, é completamente diferente do que se educa um menino. Eles próprios são diferentes, por muito que se tente harmonizar as educações. As crianças querem coisas diferentes. Quem tem filhos, netos, sabe isso perfeitamente. As meninas gostam de princesas, os meninos gostam de dinossauros. Isso é um clichê e é mesmo assim. Depois, as mulheres também crescem e veem as coisas de forma diferente. Não estão tão preocupadas com guerras de poder, muitas vezes os homens, por insegurança, têm esses problemas. E as mulheres têm uma visão mais prática de muita coisa.

 Como viu a ascensão do wokismo, que defende que a criança quando nasce não tem sexo?

Tudo o que é exagero é mau. Uma das coisas que nós aprendemos é que o equilíbrio é fundamental. Nem é tudo preto, nem é tudo branco. Nós andamos entre o preto e o branco, portanto o equilíbrio é fundamental. O wokismo desequilibrou completamente as coisas e pôs a discussão num sítio onde ela nunca deveria ter estado.

Que era?

A discussão sobre o género, e todos os géneros que aparecem é uma discussão que desequilibrou porque as pessoas não estão preocupadas com isso, nem nunca estiveram. Se a pessoa é homem, se é mulher, se sente homem, se sente mulher.

Se se sente um cão, um gato?

Isso é um desequilíbrio, e não é isso que interessa às pessoas. As pessoas estão preocupadas é com os problemas reais. É com a guerra. É com as consequências que a guerra tem na vida das pessoas. É com as crianças a morrer. É com as pessoas ficarem mutiladas. É com a falta de casas em Lisboa e no resto do país. É com os empregos que pagam mal. É olharmos e vermos que em Portugal pessoas que trabalham são pobres. Como isso é possível? Isso é que as pessoas estão preocupadas. Agora, se a pessoa se sente homem, se sente mulher, se sente papagaio, quer dizer, é problema dela. Não é essa a nossa discussão. A nossa discussão deve ser outra. E, como digo, é uma questão de equilíbrio.

Mas eles também queriam reescrever a história? Não se podia, por exemplo, passar o filme E Tudo o Vento Levou, queriam cancelar livros. Um branco não podia citar um poeta negro.

Sim. Tudo exagero. As coisas devem ser na justa medida. Tem que ser equilibrado.

Isso é uma coisa engraçada. Sendo a Maçonaria uma coisa tão machista, como é que as mulheres quiseram seguir o exemplo dos homens?

É assim. A Maçonaria é uma construção humana. E, como disse, nós temos que ver as coisas aos olhos da época. Na época, realmente, as mulheres tinham um papel e um estatuto inferior. Uma minoria nunca se conformou muito com isso. Há mulheres na Maçonaria muito cedo. As Obediências femininas começam a ter forma e expressão depois da Segunda Guerra Mundial, em que as mulheres começam a ter mais consciência da sua importância. E da sua independência. E é em França, que elas estão agora a festejar os 80 anos, que começam as primeiras Obediências femininas. A Grande Loja Feminina de França, que está este ano a celebrar os 80 anos, começa logo após a Segunda Guerra Mundial.

O que pensam as novas candidatas a maçonas?

Entrevistei várias candidatas e as pessoas não têm muita ideia do que é a Maçonaria. Mas depois, quando entram, percebem que, se calhar, ali é o caminho delas. Que encontram amigas, que encontram irmãs, que encontram, às vezes, famílias que não têm. Constroem as suas regras, os seus princípios. Começam a olhar o mundo de outra forma.

E encontram também ali emprego?

A maior parte delas tem emprego. Todas as organizações têm custos, não é? A pessoa tem que ter dinheiro. Tem que pagar a quota.

 E é quanto por mês?

Não é muito. Varia de loja para loja, mas não é muito. A maior parte das pessoas tem emprego, não me lembro de nenhuma que não tenha emprego.

 Quando diz que entrevistou muitas candidatas, houve pessoas que a deixaram desiludida já que foram lá para arranjar uns favorzinhos?

Não, a maior parte das mulheres não está por isso. Há algumas que acham que aquilo é outra coisa, mas, às vezes, costumo dizer que andam à procura de unicórnios. E ali não há unicórnios. Andam à procura de verdades reveladas. A verdade que se encontra ali é a verdade que nós construímos. Aquilo não é uma escola de pensamento. Mas candidatas à procura de influência e de favores, aparecem muito raramente. Toda a gente sabe que as mulheres não têm assim muito poder. 

Como assim?  Não têm assim muito poder? As ministras da Saúde, da Justiça e do Trabalho não têm poder? A antiga procuradora-geral da República não tinha poder?

São casos muito poucochinhos. As redes de poder de influência, geralmente, são masculinas, não são femininas. É que é verdade que todas as organizações têm um lado positivo e um lado negativo. A Maçonaria não é secreta. Se não, não estávamos aqui a falar. Eu não dava a cara. As minhas antecessoras, e tivemos mulheres muito interessantes como grã-mestras, também não davam a cara. Todas nós demos. Portanto, não somos secretas. Somos aquilo que se costuma dizer, discretas.

 Mas é obviamente uma associação secreta, pois há muita gente que não quer que saiba.

Nesse sentido…

As pessoas têm vergonha?

As pessoas não têm vergonha. É o preconceito que existe na sociedade contra a Maçonaria. Depois há uns livros com as teorias da conspiração, as pessoas ainda acreditam naquilo. E depois, como eu digo, esta memória histórica da Primeira República. Há valores que a Maçonaria defende, um deles é a laicidade, e conseguiu que esse valor se instalasse na sociedade. A laicidade, numa sociedade tão católica como a nossa, nunca foi bem vista. Quando os primeiros maçons começam a tomar medidas baseadas nesses princípios, na laicidade… Como digo, trabalhei nos cemitérios, portanto conheço isso bem. Por exemplo, no século XIX, uma das primeiras medidas do governo liberal, com o Rodrigo da Fonseca Magalhães, foi a instituição de cemitérios públicos. As pessoas eram enterradas nas igrejas, nos conventos, nos espaços religiosos. Eram os padres que detinham a vida e a morte. E este princípio da laicidade, com a instituição de cemitérios públicos, foi tomado por um maçom, Rodrigo da Fonseca Magalhães. E toda a gente entendeu o que pretendia fazer. Portanto, as revoltas da Maria da Fonte, aliás, é ler A Morgadinha dos Canaviais, o povo, quando se quer sepultar a Ermelinda no cemitério público, revolta-se, quer levá-la para a igreja, e começa a insultar os pedreiros livres. Sabiam que isto tinha sido obra de maçons, porque eles queriam impor a laicidade. É também o Afonso Costa, da Primeira República, que faz a Lei da Separação do Estado das Igrejas e que institui o registo civil. Até então, eram os padres que também registavam as pessoas, o assento de batismo, o casamento e o óbito. Porque até então estava na mão da Igreja. E é a laicidade que a Maçonaria preconiza que vai…

Mas então qual a razão para fazerem o juramento em cima da Bíblia?

Uma coisa é a religião, outra coisa é a Igreja. As que fazem o juramento em cima da Bíblia, é porque acreditam. Não é toda a gente que acredita, nem toda a gente é católica. O facto de uma pessoa ser católica não quer dizer que não ache que a laicidade é importante. Que as instituições devem ser laicas, que o país deve ser laico. E que a Igreja tem o espaço para se manifestar, quando digo a Igreja não é a religião. A religião é outra coisa. A Igreja também é uma organização. E que não deve ter essa influência. E é por essa defesa, por exemplo, da laicidade, que muitas vezes os maçons são mal vistos. Pela Igreja foi durante muito tempo.

 Os novos imigrantes, maioritariamente, olham para a religião de uma forma muito mais fervorosa. É curioso que quem defende a laicidade de uma forma tão forte, depois defende arduamente a construção de mesquitas…

As pessoas são livres para escolherem a forma de vida que entendem. Acho também, se querem ser muçulmanos, se querem ser hindus, se querem seguir qualquer religião que eles tenham sido educado nelas e que acreditam, cada pessoa é livre de fazer as suas opções. Deve ter sítios decentes para o fazer. Porque reunirem-se em casas improvisadas, sem condições de segurança, também não me parece que seja muito correto. Penso também que a religião para esses grupos, e estou a pensar mais em França, acaba por ser uma forma de revolta. É verdade que são minorias, é verdade que são rejeitados, é verdade que vivem naqueles bairros de subúrbios, que não têm muitas condições, é verdade que os empregos também não são os melhores, têm algum problema no acesso à escolaridade, embora isso, parece-me, já vai desaparecendo isso. E a religião é capaz de ser aquilo que os identifica, que os distingue, um elemento de ligação. Aqui, não me parece que seja…

 Em nome da religião matam, fazem as pessoas ir pelos ares…

Sim, mas a religião sempre foi usada exatamente para isso. Quer a religião Católica, quer a muçulmana.

 Sim, mas hoje temos uma religião Católica um pouco diferente.

Felizmente, nós fizemos ainda um processo evolutivo bastante grande, que estes países não fizeram, seguiram um caminho diferente. Mas esperemos que toda a gente faça esse processo evolutivo.

 Acredita que os muçulmanos algum dia o farão?

Acredito que sim, até porque eles já estiveram mais avançados em relação a isso. Basta ver aquelas fotografias do Irão, que eram muçulmanos, mas as mulheres andavam com o cabelo sem ser tapado, usavam minissaias, estudavam… E mesmo nos outros países muçulmanos, as coisas regrediram bastante, porque já estiveram mais avançados. E depois há civilizações que… Por exemplo, temos uma loja maçónica, nós não, mas a Grande Loja Feminina da Bélgica, em Marrocos.

 Vocês têm muçulmanas na loja?

Não. E há mais lojas em países muçulmanos africanos.

 Lojas femininas?

Sim, sim. A grande Loja Feminina da França tem algumas lojas em países muçulmanos africanos.

 Nunca conviveu com essas?

Já convivi. Já convivi. São iguaizinhas, dentro das nossas diferenças, porque as obediências femininas, as lojas femininas, tem uma organização que junta as lojas femininas, as obediências femininas. E somos todas diferentes. As portuguesas são diferentes das espanholas, das francesas, das italianas, das búlgaras, das sérvias, das romenas. Dos Camarões. Somos todas diferentes. Mas temos aquilo que nos une, que somos todas maçonas, acreditamos todas nas mesmas coisas, utilizamos a mesma linguagem simbólica, utilizamos os mesmos rituais. Como digo, somos todas diferentes, mas reconhecemo-nos da mesma maneira.

 Também usam o avental?

Sim, usamos o avental quando estamos em sessão.