O Tribunal de Contas (TdC) é chamado a resolver um problema que o ministro da Educação espoletou com um despacho recente, mas a seguir escondeu debaixo do tapete: há milhares de professores a trabalhar com turmas de Educação Especial sem a habilitação legal devida. Os autores da denúncia, a que o Nascer do SOL teve acesso, pedem aos juízes para agirem no sentido de garantir «a reposição ao erário público» de pagamentos indevidos superiores a 20 milhões de euros por ano.
Na raiz do problema está a obrigação legal de os candidatos aos cursos de formação de professores de Educação Especial terem, pelo menos, cinco anos de experiência. «Isso é uma defesa para as crianças mais frágeis. Quem lida com elas deve ter aprendido antes, como todos aprendemos, em salas de aula mais fáceis», argumenta Madalena Salvaterra, titular da habilitação de Educação Especial, que dá a cara por um grupo organizado de professores na participação ao TdC.
O decreto lei 95/97 estabelece que, para se candidatarem aos cursos que habilitam à docência em turmas de Educação Especial, do pré escolar ao 12.º ano, os professores precisam de cinco anos de ‘experiência prévia’. Passe o pleonasmo, com duas justificações: a gravidade de professores sem qualquer prática fazerem a recruta profissional a ensinar crianças com necessidades especiais, cognitivas ou físicas; e o critério legal que traduz, explicitamente, essa preocupação.
O problema é que o critério dos cinco anos tem sido mais furado do que um queijo suíço. Por um lado, várias escolas superiores de Educação e outros institutos formadores admitem indevidamente candidatos sem experiência letiva prévia. Por outro, os diretores das escolas contratam professores fechando os olhos à irregularidade.
Uma tabela anexa à denúncia mostra que 2.027 docentes, no concurso nacional de mobilidade interna relativo ao grupo 910, de Educação Especial, violaram esse critério nos últimos cinco anos. Nas contas dos queixosos, isso implica, em 2024, pagamentos indevidos de 14,2 milhões de euros, «dado que os candidatos sem habilitação deviam estar a receber, como técnicos especializados, 1.565€ mensais, e estão a usufruir de um ordenado de, pelo menos, 1.714€». A denúncia refere aos juízes a necessidade de analisar os grupos 920 e 930, de apoio a crianças com surdez e falta de visão, assim como as contratações externas, da responsabilidade das escolas, para se apurar o valor global do problema. Por isso, estima em mais de 20 milhões de euros o valor global do prejuízo anual para o Estado e pede a «responsabilidade financeira reintegratória» dos responsáveis pelos pagamentos. Ou seja, que os diretores sejam instados a devolver, do próprio bolso, as remunerações indevidas.
Ministro mete a mão e fecha os olhos
O ministro da Educação teve uma entrada de leão neste problema quando reagiu formalmente ao relatório da Inspeção-Geral da Educação e Ciência (IGEC) relativo a irregularidades nos cursos de formação de professores de Educação Especial da Escola Superior de Educação (ESE) de Fafe, por violação do critério legal dos cinco anos de experiência letiva.
Fernando Alexandre homologou, em 13 de fevereiro último, a proposta da inspetora‑geral, Ariana Cosme, no sentido da «remessa ao Ministério Público» desse relatório, despacho esse que nunca chegou a ser executado. Confrontado pelo Nascer do SOL, o ministro justificou a omissão afirmando que «a ESE de Fafe regularizou todas as matérias envolvidas neste processo de inquérito, tendo, inclusive, resgatado todos os diplomas emitidos indevidamente». A instituição confirmou esta informação ao nosso jornal.
Falta saber como o Ministério da Educação pretende resolver o problema em termos sistémicos. «Vai deixar às instituições formadoras a correção do problema ou tomar alguma medida para evitar a produção de desigualdades entre professores?», perguntou o Nascer do SOL a Fernando Alexandre, em 11 de novembro. Apesar de várias insistências, não obtivemos resposta.
A denúncia do caso da ESE de Fafe foi assinada, em 19 de dezembro de 2022, por Rui Trindade Fernandes, presidente do Conselho Científico‑Pedagógico da Formação Contínua, autoridade reguladora com poderes de Estado na acreditação das entidades formadoras e das ações de formação contínua de professores. Em causa estava a inscrição em cursos especializados de Educação Especial por parte de candidatos sem cinco anos de docência previamente completados, violando o estipulado no decreto‑lei 95/97, ainda em vigor.
A IGEC, no relatório homologado pelo ministro, propunha a cassação dos diplomas especializados dos candidatos inscritos sem o requisito de cinco anos previsto na lei, assim como a nulidade das suas colocações nos concursos de acesso às escolas.
A verdade é que o aparelho do Ministério da Educação se dividiu quanto ao que fazer. A Direção-Geral da Administração Escolar, num parecer datado de 29 de maio, defendeu a não aplicação das propostas da IGEC homologadas por Fernando Alexandre. «Não se compreenderia, em nome do interesse público, que se colocasse em causa os recursos humanos necessários» ao Ensino Especial, área com carência de professores em várias regiões.
O mesmo parecer, assinado por um jurista designado internamente, invoca Marcelo Caetano para distinguir entre a declaração de «atos nulos» e a conformidade do Estado com «alguns dos seus efeitos». Por um lado, para proteção da segurança jurídica de professores contratados nos últimos anos. Por outro, pelos riscos de eventual ressarcimento, em favor do erário público, de valores indevidamente pagos por progressões na carreira, entretanto recebidos pelos professores inscritos irregularmente. Por «decisão judicial», sempre poderiam, mais tarde, levar «à indemnização e à reintegração na carreira» dos visados.
Têm agora a palavra os juízes do TdC, chamados a olhar para o problema pelo ângulo da despesa pública, sem sustentação legal, por parte das escolas.