A Europa entre os valores da civilização ocidental e a ideologia woke

Vance disse em Munique que o maior perigo para a Europa não reside em ameaças externas mas no ‘perigo interior’ que representa a erosão dos seus valores fundamentais…

Retomando a crise do Ocidente. Em 28 de abril deste ano, na minha crónica intitulada Os Dois Ocidentes assumia, como ponto de partida, o marco que é o discurso de JD Vance em Munich. No essencial, Vance afirma que o maior perigo para a Europa não reside em ameaças externas – Rússia ou China – mas no ‘perigo interior’ que representa a erosão dos seus valores fundamentais, valores compartilhados com a América do Norte. Vance criticou duramente uma crescente retração da liberdade de expressão, da pluralidade de vozes e da legítima representação popular, das vozes ditas populistas ou dissidentes, e para a exclusão de partidos ditos populistas, apontando a anulação da eleição presidencial na Roménia como exemplo paradigmático do declínio da legitimidade democrática na Europa. Da leitura integral do discurso, fica a sensação de que Vance constata a existência de dois Ocidentes um, do lado de lá do Atlântico e que retoma na sua totalidade os valores da civilização Ocidental e o outro, deste lado, que naufraga na ideologia diversitária e woke. Pelo menos foi essa a ideia com que fiquei e me levou ao conceito de dois Ocidentes: um, fruto de uma profunda revolução conservadora pela qual Donald Trump dá a cara; o outro, a velha Europa naufragando numa tentação totalitária.

Aparentemente fiz a leitura certa da situação. Mathieu Bock-Côté, prestigiadíssimo intelectual conservador canadiano vivendo em Paris lançou, há cerca de um mês, um livro precisamente intitulado Les Deux Occidents. Obra fundamental a ler por todos os que queiram ter a percepção exacta da encruzilhada existencial em que hoje nos encontramos. Sob o título A Falha Atlântica (falha no sentido geológico de fractura) Laurent Dandrieu, na revista Valeurs Actuels de 29 de outubro diz-nos que, nesse ensaio, Bock-Côté «traça um quadro do abismo que se criou entre uma América trumpista em plena revolução conservadora e uma Europa transformada na cidadela do progressismo diversitário. Dos resultados do visível choque frontal entre essas duas realidades dependerá o futuro da nossa civilização». E este choque será tanto maior quanto «a vitória do campo populista no coração do império, em Washington, lançou o pânico na nomenklatura europeia que jurou a si própria impedir a vitória dos insurrectos na sua casa e que, assim, hoje, tranca as instituições políticas sob o nome de Estado de Direito para, custe o que custar, impedir os populistas de alcançar o poder […] a Europa ocidental restaurou o delito de opinião não cessando de alargar o perímetro das opiniões interditas». E continua: «A retórica da ingerência estrangeira é cada vez mais utilizada para desqualificar os discursos que desagradam ao regime transformando o adversário num inimigo do interior, um traidor a banir […] enfrentamos uma casta que se permite mandar o povo revotar quando o povo vota mal (porque ele vota cada vez pior e por todo o lado o sistema abre brechas) e quando o cordão sanitário, que permitia ferir de ilegitimidade os votos nos maus partidos deixa de funcionar, eles desembaraçam-se do cenário democrático: anulam-se as eleições que desagradam, ameaçam-se os partidos decretados como ‘anti-democráticos’ ou ‘anti-constitucionais’, decapitam-se juridicamente os seus candidatos, recria-se o delito de opinião sob o nome de ‘luta contra o ódio’ tudo isso em nome da salvaguarda da democracia e do Estado de direito».

Pequeno exemplo de um diagnóstico impiedoso que não queremos deixar por aqui, porque traça um quadro essencial para percebermos o que de facto se está a passar no mundo que nos rodeia. A ele voltaremos.

Vice-presidente da Assembleia da República