Arouca em papel de parede…

Fizeram-nos acreditar que o mundo seria uma disneylandia ao serviço dos prazeres do consumo e dos voyeurismos hedonistas. Já não somos filhos dos trinta anos gloriosos, nem os bastardos desta conspiração neocapitalista/globalista que nos querem impor como único modo de vida: o empobrecimento como condição natural.

Papel de parede é título de uma crónica que procura questionar a forma como celebramos a mudança e a transformação na sociedade e cultura local. A sua escolha está diretamente relacionada com os tempos frágeis e mutantes que se vivem em termos económicos, sociais e culturais a nível nacional e internacional. O mundo está mais frágil e desprotegido perante as ameaças que novamente pairam sobre nós. Os anjos da guarda recolhem as asas numa atitude de indignação e, perante a estupidez humana regressam aos mausoléus de Fragonard, libertando o homem dessa condenação primordial, mas ao mesmo tempo, desprotegendo-o das incertezas e desesperanças do mundo.

As sociedades desde o local ao global massificam-se, empobrecem espiritual e intelectualmente, perdem centralidade antropológica perante a afirmação da bestialidade do consumo, do novo-riquismo, da ignorância e da exploração económico-financeira. Fizeram-nos acreditar que o mundo seria uma disneylandia ao serviço dos prazeres do consumo e dos voyeurismos hedonistas. Já não somos filhos dos trinta anos gloriosos, nem os bastardos desta conspiração neocapitalista/globalista que nos querem impor como único modo de vida: o empobrecimento como condição natural.

Os valores humanistas e os Direitos Humanos são substituídos pela grosseria, pela bestialidade, pela ignorância, pela prepotência do “ter” em detrimento da dignidade do “ser”. Um mundo onde a ganância e a exploração são a marca de água duma civilização em decadência galopante, incapaz de fazer frente a um capitalismo imoral e sem justiça social.

Ao utilizar a metáfora do papel de parede, remeto obrigatoriamente para os tempos actuais de oportunismo e de voyeurismo, de superficialidade e de não identidade. Na realidade o papel de parede foi muito utilizado e divulgado nos anos 60/70/80 do século XX. Foi sem dúvida uma “revolução” estética que nos entrou pelas casas adentro, decorando quartos, salas, escritórios, cafés e estabelecimentos públicos, aplicado em tudo que era parede de corredor ou de sala de visitas. Alguns destes produtos eram personalizados e tinham direito a aplicação de técnicos especializados; outros, mais populares e de menor qualidade eram aplicados pelas mulheres ou homens lá de casa. A sua utilização contribuiu para a banalização do espaço habitado, para uma maior artificialidade e transitoriedade estética, os espaços transformam-se em cápsulas efémeras, condicionando a nossa acção e interação, a verdade estética é substituída pela sedução da falsa artificialidade, pela mentira plástica, pelo poder da moda; estamos perante a emancipação da cultura moderna com o aparecimento de ambientes fortemente estetizados e lúdicos. Tudo é falsa mudança e transitoriedade anacrónica, o passado já não é enigma, mas patologia, o autêntico e original, cedem perante a facilidade da representação cenográfica da vida moderna dominada pela sedução e a emoção dos bens destinados ao consumo comercial.

Quando olhamos para o nosso território à escala do local/concelhio percebemos bem o impacto deste tipo de políticas municipais que nos remetem para uma ideologia típica do papel de parede. A Vila e concelho de Arouca também são integradas nesta receita de renovação urbana, de organização do território, de reconstrução de edifícios de interesse público, de conservação do património natural, histórico e arqueológico; e na programação e produção cultural.

A conservação e promoção do património histórico-arqueológico-ambiental concelhio foi uma das áreas com maior actividade e maior visibilidade em termos de valorização e manipulação lúdico-festiva. Uma actividade fortemente concebida como produto estetizante ao serviço das emoções colectivas: as feiras medievais, a feira histórica em torno do mosteiro e suas freiras, as aldeias mágicas e as rotas turísticas, o imaginário do volfrâmio com as suas rotas, omitindo a exploração, a injustiça, o trabalho infantil e feminino, as doenças e a contaminação das águas e solos que ainda persistem. As pedras parideiras e as trilobites remetem para os tempos do Jurássico, um tempo de possibilidades mágicas que nos levam até ao Torsovosaurus, ao Lusotitan e ao famoso Asterix das montanhas mágicas.

A idealização e construção de objectos cintilantes como a famosa ponte de vidro, os passadiços do Paiva, as ciclovias turísticas nas margens do Arda, os campos de lazer, os centros interpretativos são a materialização desta ideologia do lazer e das emoções de hipermercado. Os trofeus ganhos, uma espécie de “Óscares” mundiais de turismo que registam a validade de todo este “lixo” estético ao serviço das massas globalizadas que procuram aqui matar o tempo que lhes sobra depois da vidinha refeita.

Esta prática remete para uma dimensão social dominada pela artificialidade enganosa intrínseca ao papel de parede, que permite esconder os problemas verdadeiros da nossa vida real, oferecendo em troca um mundo de fantasia e de hiper-realidades positivas contagiantes. Do ponto de vista psicanalítico é confrangedor olhar para aqueles figurantes, vestidos de forma ridícula como padres confessores, abadessas e freiras de clausura, moços de adega ou de serviçais a desfilar contas e pregões. Empanturrados de fantasias e de bolos conventuais lá vão os bobos da corte em cortejo solene, com as suas barrigas de fora arrastam os trajes desde a taverna ao altar.

Entrar na Avenida Movimento das Forças Armadas (MFA) e dar de frente com aquele mostrengo vestido de branco à entrada de Casa tradicional e doces, fazendo lembrar que a Vila de Arouca já foi couto monástico e foro de freiras bernardas e abadessas donatárias. Mulheres santas e virgens, mas pouco dadas aos valores iluministas da liberdade, da igualdade e fraternidade. Mulheres que casavam com o divino e viviam em estado de graça. Claro que a Roda dos Expostos lá se ia enchendo de fedelhos, uns fruto da liberalidade camponesa e outros, filhos da libido religiosa. Mas eram todos “filhos de deus”.

A história local narrativa ficcional de um colectivo imaginado-projectado, estabelece ligações perturbantes com a a ideologia do papel de parede. Enquanto suporte de imaginários descontextualizados, não submetidos a uma análise objectiva critica, são capazes de proporcionar momentos de grande êxtase colectivo e elevado frenesim psíquico aos residentes deste local programado e policiado.

Estamos perante o efeito do papel de parede aplicado à história local e seus quotidianos simbólicos. O caso mais gritante e imoral foi a transformação do Mosteiro antiga Casa de Cultura Arouquense em espaço hoteleiro, com uma programação de falsas estórias e de mentiras psicanalíticas transformadas em conto de fadas para entreter turista. E a Festa da Coroação da Rainha Santa Mafalda. Um processo complexo de desmemorização colectiva, de despolitização local e de deslocamento ontológico ao serviço de um passado programado e plastificado.

Antropólogo e Investigador CICS.NOVA_UM/LAHB